Crítica

Reunimos neste espaço a fortuna crítica da criação literária de Rudinei Borges. Leia a seguir resenhas e análises dos livros Chão de terra batida (poesia, 2009), Dentro é lugar longe (dramaturgia, 2013) e Memorial dos meninos (poesia, 2014). Além de artigos sobre peças de autoria de Rudinei que foram encenadas, mas continuam inéditas em livros, como Agruras, ensaio sobre o desamparo (2013). 

Dentro é lugar longe [por Alfredo Diaz]

A tessitura de Dentro é lugar longe, texto dramatúrgico de Rudinei Borges (uma das mais proeminentes vozes da poesia e da dramaturgia contemporânea brasileira), é perpassada, sobretudo, por memórias da meninice. Lembranças de nascimento e morte são contadas compondo a metáfora da vida como estirada, estrada longa. Neste novo livro, pós Chão de terra batida (2009), o poeta acende fagulhas da vida como viagem, caminhada das distâncias, num itinerário em que malas vazias e abarrotadas são carregadas como presentificação de conquistas e de pelejas.

Em um texto de cortes secos, marcado pela brevidade da palavra, o autor desvela novos caminhos para a dramaturgia numa composição poética de raro alcance (um roteiro de repentes que lembra a fragmentação do filme A idade da terra de Glauber Rocha) e evoca sussurros de meninos da pintura de Cândido Portinari. Da fotografia de Antanas Sutkus e Henri Cartier-Bresson. Do cinema de François Truffaut. E da presença do menino na obra de grandes autores como Adélia Prado, Alberto Soffredini, Carlos Drummond, Cora Coralina, Dalcídio Jurandir, Guimarães Rosa, Herta Müller, Juan Ramón Jiménez, Manoel de Barros, Manuel Bandeira e Mário Quintana.

A palavra na dramaturgia de Rudinei Borges é artesanato poético, conjunção de vozes tantas, em que tempo e espaço são reinventados à mercê do jogo de narração. Neste sentido, é significativo notar que os narradores da peça sejam meninos à volta da fogueira, todos diante do chão imenso. Com isso, é difícil dizer, com alguma certeza, se está no passado ou no presente o fato narrado. Se estamos no espaço evocado pela memória ou se somos passageiros duma andança sem destino certeiro. Entretanto, é possível perceber logo de imediato, que é a lembrança a matéria árdua que compõe Dentro é lugar longe.

Já no início da peça, a menina de cabelos negros longos diz, meio à cantoria: “a gente vive para contar”. Contar é o modo que o ser humano criou de partilhar lembranças. “A gente vive para contar o que fez: não fez: o que viu: não viu: a gente vive para acocorar os pés sobre o chão e andar por azinhagas”, diz a menina.

 Dentro é lugar longe é o chamamento para um teatro que manifesta a completude da ação cênica no ordinário da existência humana. E é exatamente nesta ação de se debruçar sobre o corpus da vida ordinária que o ser humano lembra o que foi (e é) e se dispõe a narrar. São as coisas simples, movidas pelo tempo presente, que reavivam as lembranças do passado. Neste reavivar, pouco importa se são verdadeiras ou imaginadas as lembranças, porque, neste caso, – como afirma Manoel de Barros – só 10% é mentira, o resto é invenção.

Dentro é lugar longe é invenção-reinvenção da vida vivida/não vivida.

Agruras, ensaio sobre o desamparo [por Sidnei Ferreira de Vares]

Agruras, ensaio sobre o desamparo, do dramaturgo Rudinei Borges, é um texto denso, atravessado por fortes sensações de angústia, desespero, mas também de esperança. Empregando uma linguagem metafórica, por vezes, propositalmente ambígua, o dramaturgo provoca a imaginação do espectador. Seus personagens são arquétipos e, portanto, encarnam anseios universais, uma vez que o autor dialoga e retraduz em seu trabalho as misérias humanas. Alguns personagens, inclusive, são claras alusões a personagens bíblicos, a exemplo de “Eva” que, por meio do pecado, deu origem a vida humana, e que no texto é chamada de prostituta. Outros, porém, são enigmáticos, como é o caso do “vendedor de ossos”, do “menino ferido” e do “estrangeiro”, à medida que ambos remetem a uma visão onírica e ahistórica, tal como imagens pinçadas sem o rigor academicista, porém, profundamente marcadas pelo desolamento de um mundo em ruínas. Tratam-se de personagens enigmáticos, sem nomes convencionais, representações universais da angústia e do desespero. Quem é o estrangeiro? Quem é o menino ferido? Pode ser qualquer um, qualquer um de nós.

O isolamento dos personagens é outro ponto importante do texto. Conquanto o diálogo entre as personagens demonstre sintonia, a sensação que se tem é que, no palco, encontram-se “mundos” distintos. Há certo solipsismo que enceta uma visão trágica da existência. Somos sós, todos somos sós. Algumas influências do universo fílmico são nítidas. Menciono Bergman, pois a incomunicabilidade e a solidão são traços muito presentes no texto. Há, também, uma carga psicológica que me faz lembrar a incomunicabilidade presente na obra de Antonioni, em sua trilogia do silêncio, sobretudo no que concerne à ênfase que o dramaturgo (e também diretor) dá ao corpo e ao gesto, em detrimento da fala.

Quanto à influência do teatro, há, igualmente, uma carga psicológica que, em algum momento, faz lembrar o estilo rodriguiniano. Porém, os textos de Nelson Rodrigues comportam sempre uma fina ironia, certa graça que, definitivamente, o texto de Borges não tem. Trata-se de um texto minimalista, de diálogos econômicos e precisos, portanto, sem espaço para pequenas ironias. O texto é uma faca que corta e faz sangrar do começo ao fim.

Beckett, talvez, seja uma influência maior. Sem dúvida, a carga existencial inerente ao teatro do “absurdo” faz-se ali presente. Basta lembrar que, a exemplo de Godot, “Agruras” também gira em torno de uma angustiante espera. Porém, os personagens criados por Rudinei são mais comedidos em relação às emoções. As falas pausadas e o tom de voz constante, somados a gestos milimetricamente pensados, dão às personagens um caráter quase inumano, autômatos, exceção feita à Eva que, na última parte da peça, externa toda as suas emoções, variando entre o choro e o riso, entre o bem e o mal.

A imagem do deserto, lugar onde Cristo se recolheu, mas também a representação do nada, do vazio, é constantemente evocada no texto. A oposição entre o sagrado e o profano é perceptível. A atemporalidade do texto não deixa, entretanto, de abrir margem para se pensar o desolamento do pós-guerra, devido a algumas imagens pinçadas pelo dramaturgo, como a da locomotiva que, apesar de enferrujada e decadente, emite, ao longo da peça, seu estridente som, anunciando a partida, mediante ao desamparo de personagens perdidos, sem direção, esperando, quiçá, o aparecimento do “pai”.

Aliás, é o pai, certamente, o epicentro de uma espera inacabável. O pai, porém, não é um personagem, mas apenas uma evocação, uma lembrança, uma representação da ausência, da esperança que, a um só tempo, é o fator movente de toda a angústia e de toda a esperança da trama. Constantemente evocado, o pai é uma poderosa representação das forças repressoras do mundo ocidental, seja numa vertente psíquica, moral ou religiosa. Quem é o pai? É Deus? É a representação da humanidade, dos valores sociais instituídos? Ou é o pai, figura singular, de carne e osso, provedor da família? Mas esse subterfúgio não seria um clichê, tendo em vista que a figura do pai, embora poderosa, é uma das mais exploradas pelo universo intelectual ocidental? Freud, com seu “complexo de Édipo”, demonstrou a força dessa imagem.

Contudo, nenhum conceito está fechado a leituras, a novas maneiras de ver, sentir e expressar. É nesse ponto que reside o fator criativo do dramaturgo, pois Borges não dá a entender que se trata desta ou daquela representação do pai. Pode ser isto, pode ser aquilo ou pode ser tudo isto. Quantos de nós não carregam “pais” dentro da alma? O texto, portanto, tem o mérito de possibilitar ao espectador um salto imaginativo em direção a seu universo íntimo, bem como também permite um salto para questões que transcendem a existência singular.

Chão de terra batida [Fortuna crítica]

O primeiro livro de Rudinei Borges, Chão de terra batida, publicado em 2009, foi recebido com entusiasmo por críticos como Afonso Romano de Santana e a pesquisadora Iná Camargo, da Universidade de São Paulo. A atriz Juliana Galdino considera o livro “um intenso depoimento, um testemunho que pode já ser – sem pretensão de ser – um testamento”. Para Carlos Alberto Rodrigues Pereira, mestre em Literatura Brasileira pela PUC/SP, “os poemas de Rudinei Borges possuem uma propriedade peculiar: conseguem nos impregnar da mesma nostalgia de seu autor, como se odores, sabores e outras sensações que percorrem a sua poesia se integrassem às lembranças de cada leitor. Epifanias que eclodem de cenas cotidianas revelam um universo repleto de singelas riquezas, para o qual somos transportados, por força do claro estilo do escritor. A propósito deste estilo, afirma o pesquisador, o rigor de quem procura a palavra exata e a simplicidade derivada da opção por prescindir de efeitos vazios se encontram em medidas precisas na escrita de Rudinei, o que nos faz crer estarmos diante de um poeta destinado a se consolidar entre os melhores”.

Por meio de uma prosa memorialista, algo que transita entre o regional e o universal, Rudinei Borges, apresenta-nos uma revisitação de seu espaço primeiro, no caso, o interior da Amazônia brasileira. Para Edner Morelli, poeta e também mestre em Literatura Brasileira pela PUC/SP, os poemas e textos de Rudinei guardam uma potencialidade infindável de sugestões poéticas, que vai do tom impressionista-cotidiano à surpreendente reflexão existencial-filosófica. Rudinei cria, ou melhor, re-cria sua própria mitologia, ao recuperar as figuras familiares mais íntimas, os espaços mais longínquos de sua infância-raiz, apontando para um movimento curioso de representação, que abrange o lado interior e exterior do poeta.

Para Edilson Pantoja, romancista e mestre em Estudos Literários pela UFPA, Chão de terra batida é um livro mítico. Ele remonta ao barro primitivo para tocar no mistério da gênese. Não da phýsys enquanto mundo objetivo, mas do cosmos subjetivo da poesia de Rudinei Borges. Narrativa em que as principais referências são femininas: a mãe, a vó, a Amazônia, grande ventre do qual aquelas parecem constituir figura.

Para Carlos Eduardo Marcos Bonfá, escritor e mestre em Estudos Literários pela Universidade Estadual Paulista, a cotidianidade da poesia de Rudinei Borges chama atenção. Uma cotidianidade singela, mas mesclada com elementos fantásticos, atingindo, através de algumas imagens e metáforas, os limiares de uma surrealidade distante da visão de mundo mais ortodoxa propagada pelos surrealistas franceses e também distante da violência e do erotismo típico deles. Trata-se de um cotidiano envolvido pelo fantástico com toda sua comoção singela, em que Deus é menino, em que Deus é palpável, comunicável e participa de nossa vida como mais um vivente perambulando por aí. Esta singeleza dá espaço a alguns mais ásperos e intensos momentos, como o poema Catedral de Sant´Ana.

Rudinei “tem a mão e o pulso do poema, seja ele texto, silêncio, vazio, chão, sangue, rios, árvores ou barro”, comenta o escritor Daniel da Rocha Leite. Para o poeta paranaense Rodrigo Domit, Chão de terra batida é, como o título já sugere, literatura sem reboco. Não tem rodeios nem rodopios, nem temperos ou condimentos, é literatura pura e simples, crua. Não se trata da poesia teorizada e lapidada para atingir a perfeição, trata-se da perfeição da poesia vivida”. Segundo o pesquisador Lou Caffani, Rudinei Borges não fala das reminiscências de sua vida, as faz cantar. Chão de terra batida não é uma recordação de sua infância e de seu povo, é um devir-canto dessas potências que (re)fazem uma potência viva. Para a escritora Lunna Guedes “não há pressa em suas linhas. Os versos cantam a saudade de um tempo distante do nosso. Até parece que não é real”.

Livro curioso [por Affonso Romano de Sant'Anna, poeta e crítico literário]

Trouxe livros de jovens autores para ler: um deles muito curioso - Rudinei Borges, autor do livro Chão de terra batida. Ele saiu lá de Itaituba/Pará e sobreviveu a um curso de Filosofia. [Friburgo, RJ - 28 de novembro 2009]

Um testamento [por Juliana Galdino, atriz - São Paulo]

O livro Chão de terra batida é um intenso depoimento. Um testemunho que pode já ser - sem pretensão de ser - um testamento.

Os avós [por Iná Camargo, filósofa e professora aposentada da USP - São Paulo]

Li o livro Chão de terra batida de Rudinei Borges e fiquei muito impressionada. Gostei principalmente dos textos que se referem aos avós.

O rigor de quem procura a palavra exata  [por Carlos Alberto Rodrigues Pereira, crítico de literatura – São Paulo]

Os poemas de Chão de terra batida possuem uma propriedade peculiar: conseguem nos impregnar da mesma nostalgia de seu autor, como se odores, sabores e outras sensações que percorrem o livro se integrassem às lembranças de cada leitor. Epifanias que eclodem de cenas cotidianas revelam um universo repleto de singelas riquezas, para o qual somos transportados, por força do claro estilo de Rudinei Borges. A propósito deste estilo, o rigor de quem procura a palavra exata e a simplicidade derivada da opção por prescindir de efeitos vazios se encontram em medidas precisas na escrita de Rudinei, o que nos faz crer estarmos diante de um poeta destinado a se consolidar entre os melhores.

Os sabores da infância [por Felipe Garcia de Medeiros, poeta – Rio Grande do Norte]

Chão de terra batida é um microcosmo onde o leitor caminha pelas terras e sente os cheiros e os sabores da infância, as brincadeiras de criança, as travessuras de menino levado, aquele tempo que não morre e que nos acompanha durante toda a vida e nos dá conforto quando há solidão.

O livro mítico [por Edilson Pantoja, escritor - Pará]

Chão de terra batida é um livro mítico. Ele remonta ao barro primitivo para tocar no mistério da gênese. Não da Phýsys enquanto mundo objetivo, mas do Cosmos subjetivo da poesia de Rudinei Borges. Narrativa em que as principais referências são femininas: a mãe, a vó, a Amazônia, grande ventre do qual aquelas parecem constituir figura. O livro conta, em instantâneos plenos de beleza e encanto, a conformação da poesia e do poetar na alma do menino. E, não obstante, na subjetividade do processo, uma viva comunicação se estabelece. O leitor se vê no poeta: Mistério da poesia! 

O chão de Rudinei Borges [por Edner Morelli, poeta – São Paulo] 

A literatura de Rudinei Borges impressiona pela sua simplicidade, comprovando que a boa obra literária nem sempre precisa se apoiar num hermetismo estético que, muitas das vezes, não dizem nada. Por meio de uma prosa memorialista, algo que transita entre o regional e o universal, o autor, com invejável tom poético, apresenta-nos uma revisitação de seu espaço primeiro, no caso, o interior do Pará. Ao optar pela primeira pessoa, a obra adquire uma certa atmosfera autobiográfica, porém, nunca se esquecendo da possibilidade de representação que as imagens literárias nos proporcionam.

O texto de Rudinei, materializado em seu primeiro livro “Chão de terra batida”, beira o relato pessoal, misto de crônica e conto fragmentado, com perdão da redundância. Obviamente, por trás dessa economia de meios de linguagem, os textos desse livro guardam uma potencialidade infindável de sugestões poéticas, como verificamos no texto abaixo, que vai do tom impressionista-cotidiano à surpreendente reflexão existencial-filosófica:

Altar
 

Mãe rezava o rosário inteiro
antes de dormir.
E eu baixinho repetia
as palavras da mãe:
amar significa olhar para as coisas
sem sentir saudades delas.

Rudinei cria, ou melhor, re-cria sua própria mitologia, ao recuperar as figuras familiares mais íntimas, os espaços mais longínquos de sua infância-raiz, apontando para um movimento curioso de representação, que abrange o lado interior e exterior do poeta. Como uma fotografia em prosa, Rudinei nos oferece uma visita de seu mundo particular, pois só ele esteve in locus nessas reminiscências, que esse livro possui a pretensão literária de eternizá-las.

As águas densas das sensações [por Sidnei Ferreira de Vares, educador - São Paulo]

Chão de terra batida é um mergulho nas águas densas das sensações, as mesmas águas em que navegam as pequenas embarcações que os olhos do menino avistavam do cais. Entre ruas e personagens, Rudinei Borges se debruça sobre o passado, resgata impressões do cotidiano e irrompe o universo cultural de sua terra, a Amazônia. O que mais agrada em Chão de terra batida é a capacidade do autor em olhar o passado sem distanciar-se do presente e correlatamente projetar o futuro. A maneira como Rudinei interage com a temporalidade torna este livro imprescindível. 

Os elementos fantásticos do cotidiano [por Carlos Eduardo Marcos Bonfá, escritor - São Paulo]

A cotidianidade da poesia de Rudinei Borges chama atenção. Uma cotidianidade singela, mas mesclada com elementos fantásticos, atingindo, através de algumas imagens e metáforas, os limiares de uma surrealidade distante da visão de mundo mais ortodoxa propagada pelos surrealistas franceses e também distante da violência e do erotismo típico deles. Trata-se de um cotidiano envolvido pelo fantástico com toda sua comoção singela, em que Deus é menino, em que Deus é palpável, comunicável e participa de nossa vida como mais um vivente perambulando por aí. Esta singeleza dá espaço a alguns mais ásperos e intensos momentos, como o poema “Catedral de Sant´Ana”.

A mão e o pulso do poema [por Daniel da Rocha Leite, escritor - Pará]

Rudinei, meu irmão, li o teu livro esta tarde. Releva a intimidade a seguir: parece que eu estava lendo um pouco de minha própria vida. Ri, chorei, sofri e me fascinei. Há similitudes na tua/nossa genêse. Esfinges que irão nos acompanhar eternamente. Sim, todos nós somos escritores em construção, do contrário, se pensarmos que estamos construídos, estamos acabados.

Meu amigo, tens a mão e o pulso do poema, seja ele texto, silêncio, vazio, chão, sangue, rios, árvores ou barro. Em todos estes lugares lá estará o coração da vida, as tuas marcas e letras: o olho d’água da tua poesia.

Sim, a Dona Rosalva Borges deve estar muitíssimo orgulhosa. Assim, como eu também estou de ti.  A genuína fraternidade talvez deva ser esta: sentirmos orgulho pela luz do outro como se ela fosse nossa também.

Segue, meu irmão.

És mais um na luta.

Poeta dos bons!

Literatura sem reboco [por Rodrigo Domit, poeta – Rio de Janeiro]

Chão de terra batida é, como o título já sugere, literatura sem reboco. Não tem rodeios nem rodopios, nem temperos ou condimentos, é literatura pura e simples, crua. Não se trata da poesia teorizada e lapidada para atingir a perfeição, trata-se da perfeição da poesia vivida.

Sensações na pele [por Lunna Guedes, escritora – São Paulo]

A poesia de Rudinei é o passo do homem no meio do asfalto que ainda não chegou. Não há pressa em suas linhas. Os versos nos cantam a saudade de um tempo distante do nosso. Até parece que não é real.

O fundo do quintal
era o cemitério dos bichos
quando morria gato e cachorro
era lá que a mãe enterrava
Um dia morreu a nossa cadelinha
e não teve jeito: fiz promessa,
enxuguei lágrimas e rezei
para que Nossa senhora
intercedesse por ela no céu.

Ele fala de colheitas e do menino que se perdeu no meio do caminho ao chegar na cidade de prédios altos e olhar para baixo. Lá no meio de sua gente, ele olhava pra cima e via estrelas, milhares delas… Via também os bichos, o mato crescendo pro lado e sua gente ribeira crescendo em meio a simplicidade da vida. Meia dúzia de par de olhos é preciso para se fazer uma vila, outra meia dúzia para se fazer uma cidade que se reúne ao redor do rádio para vibrar com o gol do Brasil.

Tenho saudades do que é breve
e vai além dos barcos
Esvai com a alvorada
(…)

E ao fazer a travessia das páginas, você descobre que o menino cresceu e foi além das divisas da pequena cidade onde cresceu, mas é preciso enfatizar que as sensações continuam em sua pele, afinal, um poeta se alimenta de suas próprias verdades.

No norte do Brasil há casas de barro em ruas de barro. Um dia vi Deus empinando pipa.

Sabores amazônicos [por Carlos Américo Kogl]

A mim pareceu ter encontrado um velho amigo. Pareceu ter encontrado Milton Hatoum misturado ao “Meu Pé de Laranja Lima”. Pareceu mesmo. Uma pitada de “Meninos da Rua Paul”, com algo de mim mesmo, que nasci em São Paulo, mas cresci em campinhos de Várzea e terrenos baldios. Minha vó tinha o quintal mais bonito, com jabuticabeiras e um triciclo. Rudinei me devolveu tudo isso. Rudinei Borges, aquele que se diz em construção, presenteou-me com a infância, não só a dele, mas também a minha. Imagino-o completo e, assim, não pretendo perdê-lo de vista.


Chão de Terra Batida é um destes livros que se lê num gole só e, não muito depois, se saboreia como ceia de Natal… sorvendo a cada página cheiros e sabores amazônicos. Somos todos brasileiros, uns de cá outros de lá, mas fundamentalmente como seres humanos, carregamos um universo dentro de nós. Felizmente Rudinei Borges se apresenta como tradutor.