Entrevistas


Escrevo porque amo a doença [entrevista a Alfredo Diaz, 2013]

Uma entrevista com Rudinei Borges, o poeta da Amazônia radicado em São Paulo. Um jovem poeta brasileiro. A conversa aconteceu em uma de minhas corriqueiras passagens pelo Brasil. Entre idas e vindas de Coimbra, Portugal, para Sampa vi a peça que Borges escreveu e dirigiu: Agruras, ensaio sobre o desamparo. Trabalho denso, de palavras breves e poesia firme – impregnada. A entrevista deveria, a princípio, se ater à peça, mas seguiu para um descortinar da criação literária deste que é uma das mais proeminentes vozes da nova poesia brasileira.
Alfredo Diaz – Creio que numa primeira indagação desta nossa conversa seja relevante apresentá-lo aos leitores. Decerto, as definições não sejam o melhor meio de apresentar um escritor, porém a questão é: Rudinei, como você se define dentro do campo literário?
Rudinei Borges – Sou poeta, sobretudo. Neste sentido, não importa se escrevo poemas razoáveis ou extraordinários, mas importa este modo de me colocar no mundo: poeta. E isto significa tanto. Significa olhar para as coisas tantas do mundo e refazê-las em palavras por intermédio de metáforas e invenções tantas. Significa ter um interesse particular por quase tudo, nem mais nem menos especial, que outras pessoas talvez não tenham. E significa principalmente um compromisso arraigado com a palavra, a matéria fundamental do poema. Quando escrevo peças de teatro, crônicas e contos é como poeta que escrevo. Quando estou no palco e tento interpretar algo é por desejar ouvir o som da palavra do poema. Não mais. E me entendo como poeta que vive um autoexílio. Um poeta do centro antigo de São Paulo, mas que não é de lá. Um poeta que está impregnado da sujeira do centro, do submundo do centro, dos sebos, igrejas, ruas, bares, esquinas e edifícios do centro antigo de São Paulo, mas que não é de lá. Vejo-me como um poeta que não saiu de Itaituba, minha cidade natal, oeste do Pará, Amazônia. Aquelas procissões de julho, aquelas rodas gigantes dos festejos de Sant’Ana, aquelas mulheres que rezam terços em capelinhas, aquelas mulheres que lavam roupas em cacimbas, aqueles meninos que pulam do trapiche no Rio Tapajós, aqueles estivadores do porto, aqueles homens de vicinais, aquilo tudo não saiu de mim. Continua agarrado em mim como âncora.

Vejo-me como um poeta que ama vertentes tantas da poesia. Desde os poetas brasileiros que escrevem sobre as miudezas (Manuel Bandeira, Carlos Drummond, Mário Quintana, Cora Coralina, Manuel de Barros, Lêdo Ivo, Thiago de Mello, Ferreira Gullar e Adélia Prado) à poesia psicodélica de Walt Whitman, Allen Ginsberg, Lawrence Ferlinghetti e Roberto Piva e aos grandes Arthur Rimbaud, Rainer Maria Rilke, T. S. Eliot, Mário de Sá Carneiro, Gertrude Stein, Yeats, ee cummings, Federico Garcia Lorca e Maiakovski. Um devoto de Friedrich Nietzsche, Marcel Proust, Franz Kafka, Ingmar Bergman, Samuel Beckett e Fernando Pessoa. Um devoto de Isaac Bábel e Gabriel García Márquez. Um devoto de Claude Monet, Henri Cartier-Bresson, Antanas Sutkus, August Sander e Edouard Boubat. Um devoto de Glauber Rocha, Pasolini, Fellini, Akira Kurosawa e Andrei Tarkovski. Um devoto de Dalcídio Jurandir. Um leitor atrapalhado de Guimarães Rosa e Rubem Braga. Um poeta que quer saber mais de João do Rio, Herta Müller, Tadeusz Kantor, Heiner Müller, Sarah Kane, Bob Dylan, Roberto Bolaño, Esopo e Eurípides. Um poeta que ama o mar, sinos, barcos e trens. Um poeta que se diz ateu, mas tem uma imagem de Nossa Senhora entre os livros, em sua pequena biblioteca. Um poeta que tem seis livros na cabeceira da cama: um dicionário de língua portuguesa, O guardador de rebanhos de Fernando Pessoa, um dicionário de tupi-guarani, Libertinagem de Manuel Bandeira, o antigo testamento e Grande Sertão: Veredas de Guimarães Rosa. Um poeta que viaja todo mês de dezembro para Itaituba e depois volta para o centro antigo de São Paulo.
Alfredo Diaz – Outra questão breve de resposta provavelmente complexa: o que o inquieta como poeta?
Rudinei Borges – Pergunto-me, sobretudo, o que significa ser, em nosso tempo, um poeta de origem negra e indígena, homossexual, nascido na Amazônia. Pergunto-me o que significa ser um escritor filho de uma mulher trabalhadora que até hoje peleja mais de oito horas por dia para sobreviver. Alguns dirão: são somente rótulos. Não creio que sejam somente rótulos. Ainda vivemos um tempo árduo em que origem étnica, orientação sexual, condição social e local de nascimento são disparadores de preconceitos os mais aterradores. Qual a relação do meu ofício (escritor) com o que sou? Não posso apagar todos estes traços quando escrevo um poema, um conto, uma peça de teatro ou uma crônica. Do mesmo modo, não ensejo uma literatura de militância e ativismo sectários. Entretanto, indago: onde ficaram os poemas indignados com a realidade injusta que eu escrevia quando adolescente? Ou onde estão agora os meus versos que investem numa contraposição aos valores machistas, racistas e homofóbicos? A literatura precisa ser interpelada pelo mundo. E o mundo – que eu saiba – permanece cruel e injusto. Digo sem sombra de dúvidas: eu tive sorte, mesmo numa realidade de pobreza, de ir à escola, de ser incentivado à leitura, às artes e à literatura por meus professores e por minha mãe. Não fosse isto, decerto não estaria aqui. Lembro-me que minha mãe migrou do campo para a cidade só para que eu pudesse estudar com dignidade. Só ingressei na escola aos sete anos. Muitas pessoas no Brasil ainda não foram alfabetizadas. Muitas pessoas que conheço nunca leram um livro e nunca foram ao teatro. Temos um percurso longo, trabalhoso para a transformação desta realidade excludente. E isto, pensando como escritor, me inquieta, me interpela, me agride.

Penso também em todas as questões ditas interiores que me interrogam todas as noites ou quando durmo pela manhã. A morte, sobretudo, me deixa atormentado. Pensar na ausência que causará a morte de pessoas que amo me leva a um estado de abandono irreconhecível. Tenho investido muitos poemas sobre esta dor. Imagino que a saudade da meninice, quando meus irmãos e eu éramos pequenos no beco da sétima rua em Itaituba, seja algo que me inquiete. Lembro isto com certa alegria, mas com um desgarramento total. O rosto da minha mãe Rosalva, do meu avô Moacir, da minha avó Alzira. Pensar que um dia não os terei, isto me persegue.

Me inquieta que muitos amigos meus não querem sentir tristeza – nunca. Me inquieta a obrigação de ser feliz o tempo todo, a obrigação de ser bem sucedido. Me inquieta a obrigação de ter carro, casa, ganhar dinheiro, falar línguas e viajar para a Europa e os Estados Unidos. Me inquietam os guetos literários, a desigualdade de oportunidades.

E me inquieta, em especial, o desejo de perseguir a minha própria voz literária. O ensejo de não ser apenas eco dos meus escritores mestres. O desejo de escrever com honestidade. Isto me inquieta.

Alfredo Diaz – O professor Sidnei Ferreira de Vares numa análise de sua peça “Agruras – ensaio sobre o desamparo”, escrita em 2012, afirma que é o pai, certamente, o epicentro do texto. E diz mais: “O pai, porém, não é um personagem, mas apenas uma evocação, uma lembrança, uma representação da ausência, da esperança que, a um só tempo, é o fator movente de toda a angústia e de toda a esperança da trama”. Agora que a peça está em cartaz em São Paulo, talvez esta seja uma pergunta relevante para esta conversa: que pressupõe esta imagem do pai em sua dramaturgia?
Rudinei Borges – A imagem abrupta do meu pai que partia sobre uma colina nas terras longes da fazenda onde morávamos (minha família e eu) quando criança persiste em mim e me persegue quase todas as noites quando durmo. Um dia minha mãe me olhou e disse na casa de minha avó: “meu filho, o teu pai nunca mais voltará”. Eu tinha uns quatro ou cinco anos. Minha mãe disse isto logo que eles se separaram. De certo modo, minha mãe não errou na previsão, pois depois da separação vi meu pai quase nunca. Era um homem distante, alguém que eu nunca soube ao certo quem era, se tinha riso ou tristeza no semblante. Em todo caso, não sou um escritor que se põe a controlar as palavras que surgem em minha escrita, nem as frases que se formam, nem os temas que daí ganham corpo. A minha escrita é sempre o mergulho no que sinto, no que dorme nas sombras do meu pensamento, portanto há começos não pretendidos, vozes que surgem sem que eu as invoque. É evidente que a escrita é um ofício de lapidação contínua. Todavia, isto não implica aprisionar-se nos cárceres dum racionalismo determinista. A minha escrita é um contínuo diálogo com os meus demônios, com os meus espectros. Já me criticaram por isso. Certa vez um ator me disse que literatura não é terapia, que eu devia procurar um psicólogo. Ele estava enganado e foi infeliz no que disse. A minha escrita não é uma reunião de desabafos, mas um passeio pelo parque de diversões da minha cabeça, para citar Lawrence Ferlinghetti. O desabafo não é desafio. Não escrevo para encontrar cura. Escrevo porque amo a doença. Não quero exorcizar os meus fantasmas, aliás quero amá-los. O meu pai, ou a imagem dele, é uma espécie de espectro que me inquieta. E se isto me leva a escrever. Jamais deixarei de atentar para o que surge na minha escrita a este respeito. A peça “Agruras – ensaio sobre o desamparo” nasceu desta constatação da ausência: “O pai. Nunca viu o pai. Nunca viu o rosto do pai. O pai não tem rosto. Olhos de fogo. Fagulhas no lugar do rosto. Silêncio. Vazio. Uma estrela do mar solitária. O pai não tem voz”. Isto foi o suficiente para escrever uma peça inteira, para plantar no cerne do texto a angústia dos meus contemporâneos, o medo assombroso que nos arrasa durante a vida inteira. Isto não significa que seja uma peça autobiográfica, mesmo que todos os meus textos tenham algo de biográfico, por mais codificado que seja. Nem se trata de uma imersão em sentimentos, muito menos em sentimentalismos fáceis. O desamparo comporta uma completude que envolve todos os homens, mas longe de mim pretender alcançar a dor universal. Só pretendo tecer poesia, não mais que isto. Nem que para isto seja necessário ir ao inferno, o meu próprio inferno. “Agruras” tem algo do meu inferno interior.

Alfredo Diaz – E como se desvela em sua literatura a imagem da mãe? O que ela representa?
Rudinei Borges – A evocação da presença materna no que escrevo parte do mesmo princípio que a presença paterna: sou fiel aos meus fantasmas, às suas vozes, risos e dores. Todavia, a imagem materna aparece como mãe, avó, tia, Eva, Nossa Senhora, professora e mulher rezadeira. Talvez por minha meninice ser povoada por estas mulheres todas. Sobretudo, porque foram a expressão da danação da coragem numa terra onde as mães criavam os filhos sem a presença dos pais. A minha mãe foi uma mulher que, como muitas brasileiras, vencia todos os dias as dores da pobreza para criar meus irmãos e eu. Deu-nos educação, levou-nos à escola, envolveu-nos na comunidade, apresentou-nos a dignidade. Minha dignidade de menino pobre da periferia de uma cidade amazônica, no interior do Pará, onde tudo parecia e era distante, veio da persistência de minha mãe. A religiosidade dos meus textos vem de minha mãe. O desamparo que evoco no que escrevo vem de minha mãe que vencia na vida tomada de incertezas. Cresci com esta mulher rezando rosários, indo à igreja, com a casa cheia de imagens de santos, participando de procissões, cantorias, rezas e missas. Há em mim, mesmo com o meu suposto ateísmo, um catolicismo rústico, popular, que vem de minha mãe. Graças à literatura me reencontro com isto. Não há texto em que eu não escreva sobre Deus, o diabo e a Virgem Maria. A amizade que tenho com os três vem do amor que sinto por minha mãe. E nesta roda também há minhas avós: Eva, Alzira e Ana. Há mulheres da capelinha de Nossa Senhora das Graças, mulheres das procissões de Sant’Ana, da Vicinal do 21, da Transamazônica, do cais de Itaituba, dos lugares onde andei, das mulheres que conheci em São Paulo. Ás vezes, isto tudo surge numa escrita leve, noutras vezes acordam de um pesadelo e aparecem numa escrita abrupta, dolorida. Hoje já não tenho mais medo de olhar para todas as coisas sem querer encará-las. No geral, as enfeito com véu e asas se anjo. A minha literatura é uma procissão psicodélica. Ás vezes os anjos cantam músicas de The Velvet Underground sem nenhum receio.
Alfredo Diaz – Como foi dirigir o seu próprio texto na peça “Agruras – ensaio sobre o desamparo”?
Rudinei Borges – Dirigir “Agruras” foi uma catástrofe. Um erro. Primeiro acreditei que podia atuar, interpretar O estrangeiro, o personagem atordoado da peça, aquele que supostamente matou o pai. Um dos fantasmas que encontrei e pus na peça. Por sorte, desisti disto. Depois veio toda a dor de escolher caminhos para a encenação. Estas escolhas foram difíceis. A proposição de um teatro estático talvez não tenha sido compreendida, nem alcançou, de fato, a cena. Ocorre que um dramaturgo pode pensar que a encenação sempre estará aquém do texto. Ou pode ocorrer que a encenação seja tão sagaz que vá além do texto. De fato, creio que ainda há caminhos longos para que eu possa encenar com dignidade o que escrevo. Nem sei se pretendo continuar a dirigir textos de teatro. A verdade é que é uma peleja encontrar alguém que dirija textos de novos dramaturgos no Brasil. Todos querem dirigir clássicos, grandes autores, nomes estrangeiros. Neste caso, o próprio dramaturgo passa a ser o encenador. E não há nada mais indigesto que dirigir uma peça de teatro, que enfrentar a precariedade do nosso teatro, com pouco dinheiro. Tive dificuldade para encontrar até salas de ensaio. O cachê dos atores é uma tristeza. Tudo é feito com muita labuta. Parece que as coisas não andam. Porém, não se pode reclamar. Não se pode ser chato. É preciso dizer que tudo está bem no teatro. Aliás, o diretor geralmente é o irmão chato. E penso que bons diretores são essenciais, aqueles que pensam a completude da encenação e, sobretudo, olham para a formação do ator e têm honestidade no ato de adentrar a escrita do texto dramatúrgico. Da minha encenação em “Agruras”, do meu modo de dirigir, posso dizer que é minimalista, que fugi do exagero, que quis buscar a sutileza dos gestos e dos objetos. Que desprezei os gritos, o que é difícil para os nossos atores, pois eles quase sempre buscam uma dramaticidade piegas. Em verdade, dirigir uma peça de teatro é uma atividade injusta, pois temos que concorrer com o paradigma piegas das novelas, do cinema e do próprio teatro que se veem na obrigação de produzir risos e choros. Na maior parte dos casos, há também pouco estudo entre os atores, falta leitura, conhecimento de cinema, música, arquitetura e artes plásticas. Falta entre os atores uma formação cultural mais sólida. E também falta uma formação em técnica teatral mais sólida. É preciso ir além do paradigma das escolas, que configuram um bom começo inegável. Porém, só a escola não basta. E principalmente, vejo que os atores leem pouca dramaturgia. E isto é imprescindível. Não acredito em ator que não leia. Não acredito muito no meu trabalho de direção, por mais que eu seja disciplinado, inquieto e persistente. Não acredito que tenha dado certo. Ser dramaturgo já é difícil, imagine dirigir. Preciso confessar: sou apenas um poeta, o resto é ousadia. Atuar, escrever peças e dirigi-las, isto não passa de teimosia. Sou poeta – é o que tento.

Alfredo Diaz – Que textos seus já foram publicados, Rudinei?
Rudinei Borges – Minha única peça de teatro publicada em livro é um texto que escrevi entre 2012 e 2013 exclusivamente para a encenação de um grupo de teatro de São Paulo, chama “Dentro é lugar longe”, trabalho que nasceu de pesquisa sobre memória e história oral. A peça é uma escrita poética da reminiscência dos próprios atores, quis tecer em metáforas o enfrentamento da morte na meninice. O livro trás fotos de todo o processo de pesquisa que resultou desta peça. Também reuni informações do grupo de teatro que encenou esta peça e publiquei o livro “Teatro no ônibus” pela Cooperativa Paulista de Teatro. Deste mesmo projeto, foi publicado um livro de artigos sobre teatro. Fui o organizador do livro “Fagulhas”. Participei de várias antologias de poemas e publiquei contos. Porém, o meu primeiro livro é um trabalho breve, a maior parte de poesia em prosa. “Chão de terra batida” foi publicado em 2009. Desde então, as poesias deste livro se espalharam. É o meu trabalho mais conhecido – suponho. A maior parte de minha literatura está espalhada na internet em blogs e sites. E o que tenho escrito está em livros inéditos, longe das editoras. Agora ando sentindo uma necessidade urgente de reunir num livro toda a minha produção poética, uma reunião de tudo que escrevi em poesia. Este livro tem um nome: “O livro da embriaguez”. Espero publicá-lo o quanto antes. Espero tê-lo em mãos, em papel, impresso. Vivo.

*Alfredo Diaz é poeta e doutor em literatura pela Universidade de Coimbra, Portugal. 


Sobre o livro Chão de terra batida [Entrevista concedida ao site Novos Livros de Portugal. Fevereiro 2011]
O que representa, no contexto de sua obra, o livro "Chão de terra batida"?

O livro "Chão de terra batida" [All Print Editora], publicado no Brasil em 2009, é uma espécie de livro-princípio, livro-batismo: quando as palavras tecidas estão grafadas como poesia-prosa nas páginas de um livro, como marca, cicatriz, ferida que não sara. Ferida rara, sagaz. Reuni a síntese do que é sagrado em minha história, a minha gente, a minha floresta: a Amazônia-mãe. Mas tudo em "Chão de terra batida" difere-se das outras máscaras que vivem em mim: ali fui terno, o menino do beco, do cais, da rua. O filho de uma mãe-morena, mulher da terra. Os meus outros momentos são urbanos, são noites de desespero e dor profunda: procura interminável por Deus e pelo sentido das coisas. Escrevi um livro de poesia que ainda não publiquei, um livro anterior ao "Chão", trata-se do "Livro da Embriguez" [2006-2008]: lá sou outro: cortante, seco, bêbado, amargo. O que escrevo atualmente converge com a minha vida em São Paulo, cidade imensa, cidade-madrasta. Neste momento não é possível ser bom. Já a floresta é mãe, é rede e balanço. "Chão" é o meu instante de paz, o meu quintal.

Qual a ideia que esteve na origem do livro?

Os poemas-prosa-verso de "Chão de terra batida" são textos que ficaram na gaveta desde 2003, logo quando mudei para São Paulo. São fragmentos da infância na Amazônia brasileira. Não ia publicá-los. Eu os considerava muito pessoais: a voz de uma criança que falava. Mas quando retornei para o interior da floresta, em dezembro de 2008, vi o Rio Tapajós, afluente do Amazonas; a minha cidade, a minha mãe, a minha família. Nasceu uma saudade grande nas minhas mãos. O livro veio com o desejo impossível de tornar eterno aquele instante, aquilo que era só meu. Penso que o livro "Chão de terra batida" tem o peso da voz dos mestres, dos poetas-guias. Não pude escapar de minhas influências para escrever. Manoel de Barros, Mário Quintana, Manuel Bandeira e Adélia Prado, poetas brasileiros, estão lá. Talvez eles me ajudem a proferir a palavra-poema com a minha própria voz. O livro não aconteceria sem a leitura destes poetas.

Pensando no futuro: o que está a escrever neste momento?

Vivo labutando com um romance, "O Terceiro Testamento", mas ele escapa, foge de mim. Sempre que começo acabo por envolver-me com outro projeto. Terminei uma pequena peça de teatro, "Memorial do Cais". É a primeira experiência em dramaturgia que eu realmente consegui terminar o texto. É uma peça para atores-narradores. Agora, estou escrevendo um poema grande [fato estranho em nosso tempo]. Um poema longo, confessional: a síntese do que fui até agora neste mundo. É a minha preciosidade. Um dia vou publicá-lo. Penso que será um poema de 50 páginas. Que a paz e o desespero me ajudem a terminá-lo.


Poesia em Chão de terra batida [Entrevista concedida à pesquisadora Cristina Lima, Novembro 2009]
Em 2009, o poeta e escritor paraense Rudinei Borges, que atualmente mora em São Paulo, publicou o seu primeiro livro de poesia, Chão de terra batida. Numa entrevista concedida via e-mail, Rudinei conta como a infância no interior da Amazônia influencia a sua criação poética. Acompanhe os principais momentos da entrevista.
Cristina Lima - Apresentação, poema que abre o seu primeiro livro, Chão de terra batida, inicia com o verso que diz “Eu nasci no mato, Joana”. Na parte final do livro em um texto que você nomeou de Autorretrato há outra vez esta afirmação, “sou um poeta do mato”. Por que esta fixação pelo mato? Qual o significado do mato ou da floresta em sua poesia?
Rudinei Borges - Não diria que há uma fixação pela imagem do mato. Mas, em verdade, há um itinerário a ser percorrido em meu primeiro livro e ele parte do tema da infância. Quando recordo os primeiros anos de minha vida, o que tenho guardado na memória são imagens da mata amazônica, da simplicidade do cotidiano, da figura materna e da imensidão das águas. Na Amazônia os rios são imensos. O mato talvez signifique o lugar primeiro. O que Barcherlad chama de poética do espaço. É onde nasci e de onde vim. Quando afirmo que sou um poeta do mato não estou delimitando o meu espaço, mas reconhecendo a minha própria origem. Tenho textos e poemas que evocam uma realidade absolutamente urbana, como a vida em uma cidade cosmopolita como São Paulo. No entanto, o meu chão primeiro, a minha manjedoura, é o interior do Pará. E eu quis que o meu primeiro livro fosse impregnado desta saudade do mato, da floresta. É quase como uma tentativa de fundir e confundir a infância com o local onde ela aconteceu.
C. L - Então, conte-nos sobre a cidade onde você nasceu.
R. B. - Eu nasci em Itaituba, cidade do oeste do Pará. Costumo enfatizar que fica às margens do Rio Tapajós, porque é um lugar muito bonito. Nasci na cidade, porém logo fui levado para o interior. Vivi na Rodovia Transamazônica e na Santarém-Cuiabá. A minha mãe foi caseira de sítio, cozinheira de fazenda. Itaituba foi e ainda é um município muito grande. Deve ter uns cem mil habitantes. Em geral, é possível conhecer boa parte das pessoas. Foi um lugar famoso pela exploração de ouro. Cresci ouvindo histórias de garimpeiros. Vi mulheres criando os filhos sozinhas, enquanto os maridos desejavam a riqueza no Alto Tapajós. Creio que o ouro não deixou riqueza nenhuma para a cidade. Só a poluição ocasionada pelo uso de mercúrio na extração daquele metal. Os meus pais são migrantes e foram para o Pará com a abertura da Tranzamazônica. Foram acompanhando os meus avós e lá se conheceram. O que acho interessante é que o migrante é sempre tomado de esperança, ele acredita que o lugar para onde vai será melhor. Nem sempre é assim. Alguns chamam a estrada inaugurada pelos militares, que até hoje não foi pavimentada, de Transamargura. Um apelido bem apropriado, eu acho. A vida não é fácil naquela parte do Brasil. Penso que o fato de a estrada não ser pavimentada propiciou que eu guardasse uma lembrança, um sentimento forte pelo barro. Na transamazônica há atoleiros gigantescos. Num dos meus versos eu escrevo: “no norte do Brasil há casa de barro em ruas de barro”. Outra vez tento fundir as imagens. As ruas de barro e as casas de barro são a mesma coisa. E termino com “um dia vi Deus empinando pipa”. O que percebo agora ao falar com você é que apesar de um provável cotidiano sofrível eu mantenho as mesmas esperanças do migrante. Tenho a impressão que em Chão de terra batida o cotidiano é cantado com certa ternura. De certa forma eu acredito no cotidiano. O cotidiano da pequena Itaituba e de todas as cidades muito me interessam.
(Itaituba, interior do Pará - primeira metade do século XX)
C. L - Quando você veio para São Paulo?
R. B. - Eu mudei para São Paulo nos fins de janeiro de 2003. Tenho este hábito de usar a expressão “fins”. É uma quase certeza de que o fim nunca é um só. Há vários, então. Como deve haver inúmeros começos. Como comentei, eu cresci numa cidade pequena e cresci com o desejo de conhecer outras cidades. Por alguns anos, como muitos jovens, nutri um forte anseio de ir para lugares distantes. Queria viajar pelo mundo. Acho que tem algo haver com a leitura que fiz do diário de viagem de Ernesto Che Guevara ou com a vida de Rimbaud. Aliás, Rimbaud sempre me fascinou muito. Ele também veio do interior como eu. Porém, ainda não alcancei o mundo. O máximo que consegui chegar foi em São Paulo, que é um universo enigmático. Tenho vontade de deixar tudo e partir para uma viagem Brasil a dentro, Amazônia a dentro. Partir numa caravana como fez Mário de Andrade. Descer o inferno, como Drummond chamou a viagem de Mário. Um dia vi num livro uma foto de Mário de Andrade no porto velho de Santarém. Era uma fotografia antiga. Eu queria ser como aquele poeta que viajava atrás das raízes de seu país. Queria ser como o poeta que escreveu Macunaíma. Quando cheguei em São Paulo fui visitar o túmulo de Mário como um filho perdido que visita o pai distante. Senti alguma emoção. Engraçado, não escondo que sou guardador deste envolvimento familiar com as coisas. Lembro que certa vez peguei um caderno e fui perguntar para a vó o nome de todos os nossos parentes. Queria saber tudo. O nome de todos. Sou uma espécie de filho agarrado-desgarrado. Pareço distante, mas ao mesmo tempo ligado às minhas raízes. Preciso dizer que antes de vir para São Paulo, eu morei um ano em Santarém. Logo completei dezoito anos e terminei o Ensino Médio, em 2001, eu saí de casa. Em São Paulo me formei em Filosofia, comecei a lecionar e atualmente sou mestrando em Filosofia da Educação na Universidade de São Paulo – USP.
C. L. - Você gosta de São Paulo?
R. B. - Gosto de Sampa. Por vezes, sinto certa aflição. É como se eu sentisse a cidade encravada dentro de mim. Preciso olhar o mar e os rios. O que é mais difícil é que não há um rio como o Tapajós na cidade de São Paulo. Por um tempo, eu achava inadmissível uma cidade que não fosse às margens de um rio. As cidades que são referências para mim estão localizadas às margens de grandes rios, como o Amazonas. Falo de Itaituba, Altamira, Santarém e Belém. Falo de Alenquer, Oriximiná, Óbidos e Monte Alegre. São todas cidades paraenses. Eu só conheci o mar em 2003. Faz pouco tempo. O meu mar era o Amazonas. São Paulo é um mundo misterioso de casas, edifícios, pontes, avenidas e pessoas diferentes. Inusitadas. Você olha para um lado e para o outro e ainda não conhece nada. Lembro que o que mais me impressionou no centro foi o Viaduto do Chá. Até hoje não sei as razões. O Viaduto do Chá esconde uma espécie de magia que eu não entendo. Juro que não entendo. Quando quero me sentir bem e em paz ando por ali. Atravesso o viaduto, contemplo o Vale do Anhangabaú e o Teatro Municipal. É um sentimento sem explicação. Muitos falam e têm razão: tudo acontece em São Paulo. A vida cultural é o que mais me anima. É possível conhecer poetas e escritores. É possível ir às peças de teatro mais experimentais. Tenho uma ligação forte com o teatro. E quando vejo o encontro de teatro e poesia sinto grande alegria. Em Itaituba, eu atuava em performances com poemas na escola, na igreja e até nas praças. Em São Paulo fiz por um tempo o curso do Teatro Escola Macunaíma, mas depois tranquei por falta de dinheiro. O teatro é um sonho que não consigo alcançar. Ora fica perto e ora está distante. Diante destes percalços, prometi que vou escrever peças de teatro, que vou manter uma relação com o teatro de algum modo. Penso que eu escolhi o teatro, mas o teatro não me escolheu. Gosto de atores como Gero Camilo, Marat Descartes. Eles nem sabem que eu existo, mas gosto do trabalho deles. Certa noite, em 2008, vi uma peça em que atuava a atriz Juliana Galdino. Meu Deus, aquilo me levou a uma sensação do sublime que eu nunca havia experimentado. Voltando aos poetas e escritores, deixa-me confessar: desde a adolescência esperava conhecer os poetas Ferreira Gullar e Adélia Prado. Como também o meu mestre, Thiago de Mello, e o poeta Manoel de Barros. Conheci três deles. Faltou o Manoel de Barros. Sou da Amazônia, entretanto foi em São Paulo que pude conversar com o Thiago de Mello. Em São Paulo pude confirmar a sua real existência. Talvez eu leve pela vida toda o peso de não ter conhecido o poeta Manoel de Barros. Não tenho como ir ao estado onde ele mora. Nem tenho os contatos necessários para essa empreitada. Devo dizer também que em São Paulo a vida é cruel e difícil. As pessoas trabalham muito e talvez não vivam com a qualidade necessária. A educação e o transporte público, por exemplo, deixam muito a desejar. Conheci comunidades como Heliópolis. Lá a maior parte do que há para os jovens e as famílias é conquista ardorosa da comunidade e não necessariamente da autoridades ditas competentes. A violência me assusta. Já fui assaltado. A miséria nas ruas também é triste e vergonhosa. Isso é São Paulo.
(Itaituba, Pará - 1960)
C. L. - Você citou alguns poetas. Quais poetas mais o influenciam?
R. B. - As minhas influências são um paradoxo. Leio e estudo diferentes expressões da poesia e da prosa. Tudo o que é literatura me interessa, na verdade. No meu primeiro livro, Chão de terra batida, identifico algumas influências claras e até inegáveis. O meu modo de ser poeta em Chão de terra batida resulta da escolha por enxergar o cotidiano com paixão e esperança. O meu objetivo foi cantar e encontrar significado nas pequenas coisas da infância. Quis encher a minha infância e de todos os meninos da Amazônia de um significado universal. Os poemas têm caráter narrativo, por isso a maioria deles foi escrito em prosa. Acredito que essa é uma de minhas principais características nesse meu primeiro empreendimento literário. Essa escolha é o resultado do meu envolvimento principalmente com a poesia de Adélia Prado e Manoel de Barros. E penso que também da leitura de Manuel Bandeira e Mário Quintana. O livro sobre nada de Manoel de Barros me deixou enlouquecido. E Oráculo de maio de Adélia Prado me fez receber multas da biblioteca municipal da cidade onde nasci. Atualmente não consigo desgrudar de Libertinagem e Estrela da manhã de Bandeira. Ninguém consegue. Libertinagem é um clássico de todos os tempos da poesia brasileira. Eu vivo os meus dias convivendo com o porquinho-da-índia, com Tereza e Irene Preta. Fale-me de poema mais extraordinário que Vou-me embora pra Pasárgada? Eu recitava aquele poema para todo mundo. Agora, por exemplo, estou labutando com a poesia completa de Mario Quintana. Foi a leitura de uma antologia de Quintana que me fez decidir por publicar primeiro os poemas de Chão de terra batida. Penso que os poetas que citei têm algo em comum, como o lirismo, a simplicidade disfarçada e um jeito prosaico de escrever os versos. O que eles escrevem parece simples, mas logo numa outra leitura encontramos uma variedade de significados e sugestões. Nos últimos dias li alguns versos de Poemas dos Becos de Goiás e estórias mais de Cora Coralina. Causa fascinação versos como “vive dentro de mim uma cabocla velha de mau-olhado, acocorada ao pé do borralho, olhando para o fogo”. O que mais gostei foi do famoso Poema do milho e, em particular, quando em certa altura do poema, Cora escreve: “Em qualquer parte da terra um homem está plantando, recriando a vida. Recomeçando o mundo”. Quero beber da simplicidade grandiosa desses poetas.
C. L - E os outros poetas e escritores? De quem você gosta em particular?
R. B. - Passei a minha adolescência inteira lendo Drummond. E Drummond pesa nos ombros, porque é extraordinário. É muito difícil esquivar-se da influência do poeta mineiro. Tenho paixão pelo Drummond de Rosa do povo. Da mesma forma amo o Gullar do Poema sujo e o Thiago de Mello de Faz escuro mas eu canto. A poesia compadecida pela miséria humana me interessa. Escrevi um poema longo de caráter social. Ainda não o publiquei e nem sei quando o tornarei público. Chama-o provisoriamente de Carne hostil. Eu o escrevi em 2005. Não o concluí. Ele surgiu depois de dois anos morando em São Paulo, num período em que eu ia de ônibus para a faculdade. Saía cedo de casa. Ia do extremo da zona sul para o Ipiranga. A vida das pessoas indo para o trabalho foi o que me motivou. Retornei a labutar com o Carne hostil em 2009. Porém, eu o acho um tanto panfletário. Outros escritores causaram tempestades em minha busca literária. Posso citar T.S. Eliot, Federico García Lorca, Rainer Maria Rilke, Bukowski, Tagore, Tristan Corbière, Mário de Sá Carneiro, Fernando Pessoa e Rimbaud. De todos estes que elenquei creio que os que mais leio são T.S. Eliot, Fernando Pessoa, Mário de Sá Carneiro e Rilke. Não tenho nenhum receio em dizer que os meus poemas de cabeceira são A terra desolada de Eliot; Tabacaria e Guardador de rebanhos de Pessoa; Divã do Tamarit de García Lorca; Os primeiros poemas de Rilke; Dispersão de Mário de Sá. Também todo o livro Libertinagem de Bandeira. É evidente que são os meus poetas de agora. Outros vão chegar. Leio Folhas de relva de Walt Whitman aos pedaços. Aos pedaços também leio Grande sertão: veredas de Guimarães Rosa, que é verdadeira poesia. Aos pedaços leio Assim falou Zaratustra de Niezsche e o teatro de Samuel Beckett. Este ano li alguns livros do poeta Roberto Piva. Não posso esquecer outros textos que estão sempre comigo como Chove nos campos de Cachoeira de Dalcídio Jurandir. A minha vida seria uma chatice sem essa gente toda. Também guardo algumas fotografias. Elas me ajudam a escrever.
(O povo indígena Mundurucu)
C. L. - Você cita Dalcídio Jurandir na epígrafe de seu livro. Por que todo este carinho por esse escritor?
R. B. - Porque devo muito do que sou à leitura de Chove nos campos de Cachoeira e de outros romances de Dalcídio Jurandir. Se eu fosse para uma ilha deserta levaria esse livro. Talvez você não compreenda, mas Dalcídio conseguiu traduzir em seu primeiro romance muito da alma amazônica, da infância dos meninos da Amazônia. Não posso negar que sou ou fui uma espécie de Alfredo, o personagem principal de Chove nos campos de Cachoeira. Sempre com o desejo árduo de partir, de ir para além dos campos molhados. Dalcídio conta a história de famílias da vila de Cachoeira, que hoje é uma cidade da Ilha do Marajó. Acho que Dalcídio se quisesse poderia trocar o nome de Alfredo pela palavra liberdade. Teria o mesmo sentido. Eu li este livro com dezessete anos, numa viagem de barco para Belém. Foram três dias olhando as margens do rio Amazonas e lendo as páginas de Dalcídio. Aquilo me encantou de tal modo que não sei o que deu em mim. Foi a partir deste fato que me entendi como sujeito amazônico, como parte de uma gente, de uma região do Brasil. O que é a Amazônia? As pessoas não sabem. Não nos compreendem. Não nos conhecem. A Amazônia é a parte esquecida da família. E a literatura amazônica? Quem sabe o que se escreve ali? Dalcídio foi um dos maiores prosadores brasileiros do século XX e poucos críticos e estudiosos o conhecem. Fico com a triste sensação de que a literatura amazônica tende a ficar no ostracismo. Espero que isto mude com o advento da internet, com os avanços tecnológicos dos meios de comunicação. A literatura é a alma de um povo. É um dos modos mais significativos para expressar o que um povo é. Eu creio nisso.
C. L. - O escritor paraense Edilson Pantoja, em um comentário sobre o seu livro Chão de terra batida, afirma que as principais referências de seus poemas são femininas, como a mãe e a avó. Ele também afirma que essas referências femininas parecem constituir figura da própria Amazônia. Como você recebeu este comentário?
R. B. - O Edilson Pantoja é da nova geração de escritores paraenses. Faz pouco tempo ele lançou o romance Albergue Noturno. Não o conheço pessoalmente. Mantenho contato com Edilson através da internet. Pantoja, decerto, fez uma leitura atenta de meu texto. Ele notou algo que tomei consciência após escrever a maioria dos poemas de meu livro. Isto que ele chama de referência feminina. Essa referência se deve em grande parte à minha própria história. Fui criado por minha mãe, pois o meu pai se desgarrou de nós muito cedo. Cresci sem pai e a figura de minha mãe tem um sentido todo especial em minha criação. Minha mãe foi e é para mim um grande exemplo coragem e persistência. Ela é destas mulheres brasileiras tomadas de uma força inacreditável mesmo nos momentos mais difíceis. Minha mãe trabalhou duramente para que eu pudesse estudar. Ela sempre me incentivou a escrever, sempre gostou de me ouvir recitar. Na verdade, a minha mãe cresceu ouvindo poemas de cordel. Era comum em Ananás, Tocantins, cidade onde ela nasceu, a leitura de romances de cordel. Talvez por isso ela admirasse tanto o filho que se dizia poeta. Mas nunca escrevi poemas de cordel. Lembro de certa tarde quando a minha mãe chegou do trabalho com um calhamaço sobre o romantismo. Devorei aquilo no mesmo dia. Admirava os poemas de Fagundes Varela para o filho morto. Acho que daí vem esta referência. A própria floresta amazônica lembra um grande útero onde estão presentes várias formas de vida.
C. L. – A religiosidade é outro tema frequente em seu livro. Em poemas como Auto do Mato, você apresenta a figura de Deus com certo humanismo. Há uma tentativa de humanizar o divino em sua poesia? Outra questão interessante é da referência aos santos, comum na cultura popular brasileira.
R. B. – Como já comentei, eu nasci no interior do Pará, numa região de muitos migrantes vindos do nordeste e sul do Brasil. Todos eles levaram para as fazendas e sítios, às margens da rodovia Transamazônica, elementos típicos de sua religiosidade, fé e crenças. Mas também as cidades ribeirinhas do Tapajós e do Amazonas são marcadamente caracterizadas pelos festejos de seus santos padroeiros, por procissões belíssimas. É o que acontece com o Círio de Nazaré em Belém. Uma vez participei do Círio de Nossa Senhora da Conceição, padroeira de Santarém. Eu fiquei impressionado com as ruas enfeitadas e com a quantidade de pessoas caminhando numa manhã ensolarada. E não vou esquecer por nada neste mundo das procissões de Sant’Ana, padroeira da cidade onde nasci. A procissão acontece em julho. Faz alguns anos que não participo. Em verdade, eu cresci meio às pequenas comunidades eclesiais de base da Amazônia que surgiram na década de 1970. Cresci meio às rezas das capelinhas, meios às novenas dos santos. Por isso, quando retomo o tema da infância em Chão de terra batida, retomo também a religiosidade característica da região de onde vim. Que não é uma religiosidade institucional. Acredito que o modo como o povo vive a sua fé transcende às instituições. Deste modo, quando penso a figura de Deus eu o apresento como um amigo de infância, como um menino. Não tenho pretensões de adentrar questões teológicas ou filosóficas. O meu desejo foi reaver a minha maneira contraditória de significar a vida e a fé. Acho que é isso.
C. L. - Você citou que mantêm contato com outros escritores pela internet. Qual a relação de um poeta que se denomina do mato com o este meio de comunicação? Como avalia você avalia os blogs e sites de literatura?
R. B. - Utilizo o computador e a internet com freqüência. Nos fins de 2007 criei um blog, depois o abandonei. Agora disponibilizo alguns textos num blog chamado A rua sétima. A internet é um instrumento muito importante a serviço dos escritores. Assim, os novos poetas podem divulgar poemas e outras criações. Publicar um livro no Brasil, principalmente de poesia, é uma batalha homérica. E nem todo mundo tem condições de arcar com os custos de uma publicação independente. Pela internet tenho conquistado novos leitores e o que escrevo pode chegar a todas as regiões do Brasil. Os sites e portais que publicam textos de novos escritores são relevantes. Posso citar o site Jornal de Poesia, o Recanto das Letras e o Portal Literal. Lembro que os primeiros poemas que li de Lêdo Ivo, por exemplo, eu os encontrei no Jornal de Poesia. Depois passei para os livros. Já li bons textos na rede. Outros nem tanto. O leitor precisar ficar atento. Precisa ser seletivo. Talvez o mal da internet seja o imediatismo. Muitos esquecem a lição de João Cabral, da necessidade de lutar com as palavras e de que a boa poesia e a boa prosa resultam de um trabalho constante de seus autores. Não existe mágica. A literatura de qualidade não cai do céu. Isso não implica que devemos abandonar a sensibilidade. Encontro muitos desabafos em blogs e sites, mas precisamos ir além disso. Uma obra literária não pode ser sustentada somente com comentários sobre a festa do último domingo. É preciso muito mais. Com o computador adquiri novos hábitos. Antes escrevia só em blocos de papel. Agora produzo no próprio computador. Mas quando saio às ruas ou ando de ônibus sempre estou com um pequeno caderno para anotações. Por vezes, nasce de repente uma frase ou um verso. Também há um movimento interessante que é o da poesia virtual, ligada à animação, ao web design. Preciso experimentar isso.

C. L. – Você termina o poema Apresentação com uma síntese de seu trabalho como poeta. Você escreveu: “O verso é meu ofício”. Como é o seu processo de criação?

R. B. – O meu processo de criação é vagaroso, porém constante. Eu escrevo com certa voracidade, mas misturo os projetos. Não sou muito organizado. Estou tentando priorizar o que vou escrever. Como inicio vários textos num mesmo período, demoro a conclui-los. Já iniciei romances, novelas e contos. E não levei nenhum projeto adiante. Perco com esse processo. Sem esquecer as idéias que surgem na rua ou no meio da noite e não tenho onde anotá-las. Elas também se perdem. Já escrevi vários poemas que estão longe de uma qualidade desejável. Nem tudo que escrevemos deve ser publicado. Sou exigente. Mas escrevo com leveza. Acredito que estou começando a me entender como escritor, como poeta. Aos poucos estou deixando nascer um certo Rudinei Borges, que é a soma de inúmeros livros lidos, a soma de muitas vozes e histórias ouvidas nas ruas. No entanto, o meu maior instrumento de trabalho é a minha memória. Por vezes, tenho a impressão que há uma sina da qual não poderei me livrar, a sina de memorialista. Eu estou impregnado das imagens do passado. Estou impregnado de minha própria infância e dos personagens daquela época. Sim, o verso é meu ofício. A memória é minha sina. Não quero perder isso.

[Cristina Lima é formada em Letras da Universidade de São Paulo, USP]