Quem se debruçar sobre a obra de Rudinei Borges vai
encontrar em seus escritos dramáticos, alumiações, andorinhas,
alumbramentos, estiradas, auroras, pelejas, lamparinas, que vão e voltam em
frases curtas, por vezes cortadas a seco, que verbalizam e quase tornam
palpáveis acontecimentos da alma, como no trecho final do prólogo da peça Dentro é lugar longe:
MENINA
COM LAMPARINA NO ORATÓRIO: Dentro é passagem: travessia: dentro é coisa que a
gente ainda não viu: dentro é coisa que vai nascer: estar por vir: dentro é o
dia deitado em terra firme: é várzea: dentro é lugar longe.
MENINO:
Assim
é que começo, terminando. Com o olho feito uma lagoa – cheio d’água: com a luz
das estrelas no céu da boca. É que ontem faz parte do hoje. & hoje faz
parte do amanhã. Tudo que foi-vem, tudo é estirada: caminhada das distâncias.
Perco-me nas distâncias. Mas confesso: perder-se é encontrar-se. [Sussurros] Só
aquele que se perde encontra andorinhas.
Se Dentro é
lugar longe é a peça de um poeta que aprendeu a chorar, como diz Rudinei, Agruras, ensaio sobre o desamparo é a
dramaturgia de um autor que teve um profundo encontro com a angústia humana.
Há (...) uma característica presente em toda a
dramaturgia escrita por Rudinei: a ação cênica sempre parte da palavra. (...) A
dramaturgia dele é uma espécie de poesia em ação.
A obra construída por Rudinei parte de uma
inquietude, tanto em relação ao uso da memória, por não se esquecer de um
passado distante, mas sempre presente, quanto no sentido de querer cavoucar
sofrimentos e angústias humanas.
“A memória da meninice é um tema que em mim não se
esgota, tenho muito a escrever sobre isto”, diz. “Algumas pessoas – como eu –
são enveredadas para a infância de maneira tão sagaz que é quase impossível o
distanciamento de lembranças que, tomadas de boniteza, permeiam o presente
quase como se tivessem sido vividas ontem mesmo ou há duas horas. Assim, o que
muitos tratam como passado eu entendo como ofício: acocorar-se diante da
infância é um ofício dos mais ardorosos”.
Mariana Marinho | Em
quatro atos, perfis de jovens dramaturgos paulistanos | 2014
ESCRITOS
DRAMATÚRGICOS DE RUDINEI BORGES
Medea Mina Jeje | 2017
Epístola.40, carta (des)armada aos atiradores | 2016
Luzeiros | 2016
Dezuó, breviário das águas | 2016
Fé e Peleja | 2014
Agruras, ensaio sobre o desamparo | 2013
Dentro é lugar longe | 2013
FORTUNA CRÍTICA | TEATRO
um ensaio sobre o desamparo
sobre miséria humana e
incomunicabilidade em “agruras”
FORTUNA CRÍTICA | TEATRO
chão
e silêncio
2012
Poetas-de-estrada adentram vielas e casas
com candeeiros. Evocam a memória dos povos e dos caminhos. Cantam a poesia-viva
das terras. Gaitas, maracás e caixas do divino anunciam a chegada dos
andarilhos. Chão e Silêncio é um
cortejo cênico-poético movido nas andanças do bando de Lampião e em tradições
populares brasileiras, como o reisado. A primeira temporada do espetáculo
foi realizada em vielas e casas da Favela do Boqueirão.
___________
dramaturgia, concepção e encenação [rudinei
borges]. atuação [alexandre ganico. heitor vallim. joão silher. lukas torres.
maria vitória. nayara meneghelli. rudinei borges]. figurino [claudia melo].
direção musical [nayara meneghelli]. realização [núcleo macabéa. cooperativa
paulista de teatro. prefeitura de são paulo. programa para a valorização de
iniciativas culturais]
agruras
ensaio sobre
o desamparo
2013
Espécie de simbiose entre grito e
sussurro, mantra que conclama o retorno de certa figura pela qual nutrimos
saudade singular, mas sequer sabemos quem é ou o que é – por ventura, chamamos
de pai: Yahweh, aquele que traz a
existência de tudo que existe. A peça é um breviário de espectros que arriscam
caminhar rumo ao deserto numa locomotiva tomada por ferrugem: Eva, um vendedor
de ossos, um menino ferido e um estrangeiro [Judas] preso a uma arca. A morte
do pai, a morte do sagrado, a morte de Deus e a morte das utopias – a evocação
do semblante dos expatriados, dos desterrados e dos refugiados numa terra
desolada – são as inquietações centrais da segunda montagem cênica do Núcleo
Macabéa.
___________
dramaturgia,
concepção e encenação [rudinei borges]. atuação [alexandre ganico. lukas
torres. nayara meneghelli. rodrigo sampaio]. figurino [claudia melo].
cenografia, iluminação e sonoplastia [rudinei borges]. preparação vocal
[fernando gimenes]. preparação corporal [jimmy wong]. realização
[núcleo macabéa. cooperativa paulista de teatro. prefeitura de são paulo. programa
para a valorização de iniciativas culturais]
um ensaio sobre o desamparo
Por Rudinei
Borges
Nunca ouviram do louco que acendia uma lanterna em pleno dia e
desatava a correr pela praça gritando sem cessar: «Procuro Deus! Procuro Deus!»
Mas como havia ali muitos daqueles que não acreditavam em Deus, o seu grito
provocou grande riso… O louco saltou no meio deles e trespassou-os com o olhar.
«Para onde foi Deus», exclamou, «é o que lhe vou dizer. Matámo-lo… Vós e eu!
Somos nós, nós todos, que somos os seus assassinos!… Deus morreu! Deus continua
morto… [Nietzsche,
A Gaia Ciência, aforismo 125]
“Agruras –
ensaio sobre o desamparo” configura espécie de simbiose entre grito e sussurro,
mantra que conclama o retorno de certa figura-morta pela qual nutrimos saudade
singular, mas sequer sabemos quem é ou o que é. Por ventura, chamamos de pai:
Yahweh, aquele que traz a existência de tudo que existe. A peça é um breviário
de espectros, ante a terra ceifada, que arriscam seguir rumo ao deserto numa
locomotiva tomada por ferrugem: Eva, um vendedor de ossos, um menino ferido e
um estrangeiro [Judas] preso a um baú onde supostamente carrega o cadáver do
pai morto. E é exatamente esta a inquietação central em “Agruras”: a morte do
pai, a morte do sagrado, a morte de Deus, a morte das utopias: a evocação do
semblante dos expatriados, desterrados: refugiados numa terra desolada,
refugiados em si mesmos.
“Agruras” é,
sobretudo, uma peça-poema [de caráter psicológico] em que a fala é motora da [e
a própria] ação cênica, o que instaura uma gagueira poética devedora da obra de
Gertrude Stein. “Agruras” é, sobretudo, uma peça-poema em que o corpo
estático [numa invocação de Bernard Maeterlinck] adentra nuanças
desesperadoras da miséria humana como impossibilidade de ser no mundo. O ensaio
posto em “Agruras” aparece como tentativa de realocar para um campo minado o
limiar entre poema e dramaturgia, texto lírico e texto dramático, questão cerne
da pesquisa teatral do Núcleo Macabéa.
A agrura e o
desamparo “tecidos” em cena remetem à completude daninha da existência humana.
Neste sentido, a peça sofre influências inúmeras da obra de Franz Kafka, Samuel
Beckett e Ingmar Bergman. E de outros importantes autores como
Kierkegaard, Nietzsche, Heidegger, Sartre, Camus, T. S. Eliot, Isaac Babel e
Herta Müller. É notória também a influência da fotografia de Henri Cartier-Bresson, Antanas Sutkus, August Sander
e Edouard Boubat. E da obra cinematográfica de Béla Tarr e Glauber Rocha.
A pesquisa
que resultou na feitura deste ensaio sobre o desamparo iniciou em fins de 2011.
O arsenal de livros, filmes, fotografias e obras de artes plásticas foi
devorado em 2012, quando concluí a tessitura do texto dramatúrgico e começaram
os ensaios. Em 2013, o Núcleo Macabéa realizou o ciclo “Teatro, angústia e
liberdade” em vista de dialogar com estudiosos de filosofia da existência. Com
isso, vieram também os estudos de introdução ao butoh e de preparação vocal.
Todos estes trabalhos foram possíveis graças ao Programa de Valorização de
Iniciativas Culturais [VAI] da Prefeitura de São Paulo.
De tudo o que
pode ser visto no breu infindo é possível que a palavra P-A-R-T-I-D-A explicite
com maior afinco as pretensões desta composição poética da terra ceifada. Nos
escombros do mundo [coivara] são tecidas as vozes do desarrimo: a ausência do
pai, a morte, a culpa e o sacrifício. A impossibilidade de partir, de
reencontrar o deserto metafórico onde supostamente o ser humano encontra alento
é a âncora que sustenta a vozearia em “Agruras – ensaio sobre o desamparo”.
+ crítica
sobre miséria humana e
incomunicabilidade em “agruras”
Por Sidnei
Ferreira de Vares
“Agruras:
ensaio sobre o desamparo”, do dramaturgo Rudinei Borges, é um texto denso,
atravessado por fortes sensações de angústia, desespero, mas também de
esperança. Empregando uma linguagem metafórica, por vezes, propositalmente ambígua,
o dramaturgo provoca a imaginação do espectador. Seus personagens são
arquétipos e, portanto, encarnam anseios universais, uma vez que o autor
dialoga e retraduz em seu trabalho as misérias humanas. Alguns personagens,
inclusive, são claras alusões a personagens bíblicos, a exemplo de “Eva” que,
por meio do pecado, deu origem a vida humana, e que no texto é chamada de
prostituta. Outros, porém, são enigmáticos, como é o caso do “vendedor de
ossos”, do “menino ferido” e do “estrangeiro”, à medida que ambos remetem a uma
visão onírica e ahistórica, tal como imagens pinçadas sem o rigor academicista,
porém, profundamente marcadas pelo desolamento de um mundo em ruínas. Tratam-se
de personagens enigmáticos, sem nomes convencionais, representações universais
da angústia e do desespero. Quem é o estrangeiro? Quem é o menino ferido? Pode
ser qualquer um, qualquer um de nós.
O isolamento
dos personagens é outro ponto importante do texto. Conquanto o diálogo entre as
personagens demonstre sintonia, a sensação que se tem é que, no palco,
encontram-se “mundos” distintos. Há certo solipsismo que enceta uma visão
trágica da existência. Somos sós, todos somos sós. Algumas influências do
universo fílmico são nítidas. Menciono Bergman, pois a incomunicabilidade e a solidão
são traços muito presentes no texto. Há, também, uma carga psicológica que me
faz lembrar a incomunicabilidade presente na obra de Antonioni, em sua trilogia
do silêncio, sobretudo no que concerne à ênfase que o dramaturgo [e também
diretor] dá ao corpo e ao gesto, em detrimento da fala.
Quanto à
influência do teatro, há, igualmente, uma carga psicológica que, em algum
momento, faz lembrar o estilo rodriguiniano. Porém, os textos de Nelson
Rodrigues comportam sempre uma fina ironia, certa graça que, definitivamente, o
texto de Borges não tem. Trata-se de um texto minimalista, de diálogos
econômicos e precisos, portanto, sem espaço para pequenas ironias. O texto é
uma faca que corta e faz sangrar do começo ao fim.
Beckett,
talvez, seja uma influência maior. Sem dúvida, a carga existencial inerente ao
teatro do “absurdo” faz-se ali presente. Basta lembrar que, a exemplo de Godot,
“Agruras” também gira em torno de uma angustiante espera. Porém, os personagens
criados por Rudinei são mais comedidos em relação às emoções. As falas pausadas
e o tom de voz constante, somados a gestos milimetricamente pensados, dão às
personagens um caráter quase inumano, autômatos, exceção feita à Eva que, na
última parte da peça, externa toda as suas emoções, variando entre o choro e o
riso, entre o bem e o mal.
A imagem do
deserto, lugar onde Cristo se recolheu, mas também a representação do nada, do
vazio, é constantemente evocada no texto. A oposição entre o sagrado e o
profano é perceptível. A atemporalidade do texto não deixa, entretanto, de
abrir margem para se pensar o desolamento do pós-guerra, devido a algumas
imagens pinçadas pelo dramaturgo, como a da locomotiva que, apesar de
enferrujada e decadente, emite, ao longo da peça, seu estridente som,
anunciando a partida, mediante ao desamparo de personagens perdidos, sem
direção, esperando, quiçá, o aparecimento do “pai”.
Aliás, é o
pai, certamente, o epicentro de uma espera inacabável. O pai, porém, não é um
personagem, mas apenas uma evocação, uma lembrança, uma representação da
ausência, da esperança que, a um só tempo, é o fator movente de toda a angústia
e de toda a esperança da trama. Constantemente evocado, o pai é uma poderosa
representação das forças repressoras do mundo ocidental, seja numa vertente
psíquica, moral ou religiosa. Quem é o pai? É Deus? É a representação da
humanidade, dos valores sociais instituídos? Ou é o pai, figura singular, de
carne e osso, provedor da família? Mas esse subterfúgio não seria um clichê,
tendo em vista que a figura do pai, embora poderosa, é uma das mais exploradas
pelo universo intelectual ocidental? Freud, com seu “complexo de Édipo”,
demonstrou a força dessa imagem.
Contudo,
nenhum conceito está fechado a leituras, a novas maneiras de ver, sentir e
expressar. É nesse ponto que reside o fator criativo do dramaturgo, pois Borges
não dá a entender que se trata desta ou daquela representação do pai. Pode ser
isto, pode ser aquilo ou pode ser tudo isto. Quantos de nós não carregam “pais”
dentro da alma? O texto, portanto, tem o mérito de possibilitar ao espectador
um salto imaginativo em direção a seu universo íntimo, bem como também permite
um salto para questões que transcendem a existência singular.
+ Sidnei
Ferreira de Vares é doutor em Filosofia da Educação pela Universidade de São
Paulo [USP]
fé e peleja
2014
Tudo é estirão. Os andejos se
assemelham e se confundem. São partes da mesma andança, da mesma travessia.
Dizem feituras do norte adentro, donde vieram. São dizerdores que avocam vozearias tantas: vozes silentes, vozes da
mãe e vozes do menino. Um espetáculo sobre a peleja da vida e da morte: a
peleja do reinicio. Peça encenada na sala e na porta de casas de moradores da
Favela do Boqueirão.
___________
dramaturgia e concepção [rudinei borges]. encenação
e preparação vocal [fernando gimenes]. atores [alexandre ganico e rudinei
borges]. figurino e adereços [claudia melo]. realização [núcleo macabéa.
cooperativa paulista de teatro. prefeitura de são paulo. programa para a
valorização de iniciativas culturais]
dezuó
breviário das águas
2016
A peça narra a trajetória do menino Dezuó que,
após a expulsão de sua vila natal – em virtude da construção de uma usina
hidrelétrica no rio Tapajós, oeste do Pará, na Amazônia brasileira –, cresce e
se transforma em um andarilho das grandes cidades, por onde passa a perambular
desenraizado, mas ciente de seu passado ancestral. A montagem do Núcleo Macabéa convida o público a mergulhar na
história por meio de uma instalação cênica em arena que reproduz a inundação da
comunidade e dos sonhos do menino. Com música ao vivo e texto de particular
beleza, a montagem foi indicada ao Prêmio Shell 2016 nas categorias cenário
[Telumi Hellen] e autor [Rudinei Borges] e ao Prêmio Aplauso Brasil nas
categorias direção [Patricia Gifford] e trilha sonora [Juh Vieira].
__________
dramaturgia e idealização [rudinei borges].
encenação [patricia gifford]. atuação
[edgar castro]. direção musical/músico em cena [juh vieira]. instalação
cenográfica e figurinos [telumi hellen]. assistência de cenografia [andreas
guimarães]. adereços [clau carmo]. apoio técnico [thales alves]. iluminação
[felipe boquimpani]. preparação corporal e vocal [antonio salvador]. fotografia
e vídeo [cacá bernardes e bruna lessa – bruta flor filmes]. direção de produção
e assistência de figurinos [isabel soares]. parceria [casa livre] .realização
[núcleo macabéa. cooperativa paulista de teatro. prêmio funarte de teatro
myriam nuniz 2014. governo federal - cultura]
dezuó: abapã, índio-caboclo torto, índio-caboclo no
atoleiro: pajé afeito a pelejas
Por Rudinei Borges
Os seringueiros, os índios, os ribeirinhos há mais
de 100 anos ocupam a floresta. Nunca a ameaçaram. Quem a ameaça são os projetos
agropecuários, os grandes madeireiros e as hidrelétricas com suas inundações
criminosas.
[Chico Mendes]
Ir para o mato é ir para casa.
[John Muir]
Tenho
visto da poeira daquele último dia que dei com as estradas de terra batida da
Vila de Pimental: cisco nos olhos. O que mais indigna e dói em Dezuó, breviário
das águas é a imagem de famílias inteiras, juntando num caminhão pau-de-arara
todos os pertences, uma vez expulsos de suas terras pelo complexo projeto de
construção de cinco novas hidrelétricas ao longo do Rio Tapajós, afluente do
Amazonas, no oeste do Pará, na Amazônia brasileira.
Este
é o maior receio das pessoas que entrevistei na Vila de Pimental entre fins de
2013 e começos de 2014 numa de minhas muitas imersões como arte-oralista na
minha cidade de nascimento, Itaituba, para onde sempre volto uma vez ao ano.
Foi no rastro desta imersão que nasceu Dezuó: abapã, índio-caboclo torto,
índio-caboclo no atoleiro: pajé afeito a pelejas. Dezuó diz por mim o que não
tenho valentia de dizer. Diz da dizimação de sua gente.
Dos
meus velhos canhenhos de notas amazônicas e gravações em áudio, guardei
histórias de vidas e semblantes das gentes daquela vila adentro da mata. Era
preciso escrever, pensei. Há uma hora, das mais aprazadas, que um escritor não
anseia outra coisa, senão incendiar a lauda em branco com urgências de seu
tempo anódino. Ensaiei escrever sobre esta questão deste o estouro de notícias
sobre a usina de Belo Monte, no Rio Xingu. Mas era preciso dizer de mais perto.
Não consigo escrever sem ouvir, por isso desembarquei no Tapajós com minhas
malas de vento e angústias [algumas aterradoras].
Dezuó,
breviário das águas não é uma peça de teatro que escrevi sem tomar posição. É
um ato poético que se põe do lado das vozes que ouvi: ribeirinhos, pescadores,
migrantes, povos indígenas e campesinos. Nesta perspectiva, pus-me [eu mesmo]
defronte dum espelho cego e me vi: amazônida, assim como sou: indígena e negro:
parte da resistência [e não separado] da minha gente. Todavia, não é uma peça
de teatro escrita por um ativista. É uma peça de teatro escrita por alguém que
tenta a poesia como norte, desafio da linguagem que brota entranhada no corpo e
na vida: é a poesia posta nas trincheiras da existência. Sempre como uma
Macabéa, um Sísifo ou um Jó que perambula com um troço pesado nas costas. Mas
rebelados eles teimam e resistem: uma fresta para quem peleja o sonho de um
tempo justo nunca é uma fresta apenas, é um rio que se levanta aguerrido para
junto do mar. Dezuó é a escrita da palavra, transcriada em poesia, das gentes
do Tapajós. Memória presente de quem vive de frente as atrocidades do sistema e
do desenvolvimentismo atropelador. E talvez se junte ao coro dos muitos
lidadores que vi morrer no norte do Brasil em defesa dos povos da floresta:
Chico Mendes, Josimo Tavares, Irmã Adelaíde, Dema e Doroth Stang – entre outros
tantos.
Dezuó
é uma obra cênica que surge envolta do campo de pesquisa poética do Núcleo
Macabéa que, em montagens como Chão e Silêncio [2012], Agruras, ensaio sobre o
desamparo [2013] e Fé e Peleja [2014], adentra memórias de desterrados, andejos
e migrantes a partir de residência artística na favela do Boqueirão, zona zul
de São Paulo. É também uma homenagem ao trabalho aturado e comovente de Edgar
Castro, ator paraense, ele mesmo um migrante, que há década tem feito do teatro
uma casa de utopias. Dezuó é uma obra cênica que só se completará, de fato,
quando chegar às comunidades ribeirinhas do Rio Tapajós; quando acontecer o
encontro face a face com todos que se põem contrários aos modos dizimadores que
alicerçam a construção das usinas hidrelétricas na Amazônia. É como um arrozal:
é preciso preparar a terra, plantar, cuidar dos primeiros brotos, deixar
crescer o arroz, até que venha a colheita. Raios fortes só tomam firmeza depois
de muita procura.
na escureza da floresta
Por Welington
Andrade – Revista Cult
Meu desejo e pensamento […numa indiferença
enorme,,,]/ Ronda sob as seringueiras [… numa indiferença enorme…]/ Num
amor-de-amigo enorme…
(Mário de Andrade, Acalanto do seringueiro)
Dezuó, breviário das águas é o nome do
espetáculo que o Núcleo Macabéa está apresentando em sua sede na Barra Funda
até o próximo dia 16 de maio. A peça narra a trajetória de um menino que, após
a expulsão de sua vila natal – em virtude da construção de uma usina
hidrelétrica no rio Tapajós, oeste do Pará, na Amazônia brasileira –, cresce e
se transforma em um andarilho das grandes cidades, por onde passa a perambular
desenraizado, mas ciente de seu passado ancestral.
O texto é do poeta e dramaturgo Rudinei Borges,
também ator e diretor de teatro, e constitui a viga mestra que dá sustentação à
rude beleza do espetáculo, crédulo de sua singeleza, austero em sua genuidade,
como uma casa muito antiga desprovida de ornatos e carente de complexidades,
mas sabedora de uma verticalidade essencial, uma casa de taipa, pois. O autor
procede em sua criação a uma bem-vinda fusão dos registros lírico, épico e
dramático, de clara inspiração rosiana. A linguagem por meio da qual Dezuó
narra sua trajetória está vazada em arranjos poéticos cuja finalidade é retirar
o espectador do plano da comunicação fática – sempre seduzida pela falácia da
informação imediata – e conduzi-lo pelo terreno da elaboração da linguagem – a
segunda pele com a qual o protagonista se veste para resistir ao dolorido
processo de escarificação [o termo é do próprio dramaturgo] de que é alvo.
Frases curtas, ritmo sincopado, elipses, símiles e marcas de discreta oralidade
salpicadas aqui e ali são os fios condutores do estilo da peça que levam
Rudinei a tanger continuamente os domínios do lirismo. Mas o registro épico
também irrompe no texto, quando este se dispõe a narrar não somente as andanças
de Dezuó como também seus pequenos feitos, proezas e ações. Singulares em sua
pequenez e, por isso mesmo, memoráveis. Por fim, a narração se converte em ação
dramática, e o narrador se transforma em atuador, actante, ator da fábula que
seu próprio corpo intermedeia e à qual imprime a marca de uma presença viva.
E eis que aqui chegamos à condição essencial
para que uma proposta como essa seja bem-sucedida: o trabalho de interpretação.
Edgar Castro é um dos excelentes atores que, residindo em São Paulo já há um
bom tempo, têm ajudado a solidificar a vocação inequívoca da cidade para o
exercício de um tipo de teatralidade que experimenta, desorganiza, reconfigura
e ousa, com rigor e consistência, enveredar pelas formas artísticas não
tuteladas pelo mercado do entretenimento ou pela indústria cultural. O custo
dessa opção, Edgar e seus pares o sabem muito bem, é alto – mas recompensa o
genuíno artista-criador, fazendo-o entrar no edifício da história recente do
teatro paulistano pela porta de chifre da invenção a serviço da memória social,
e não pela porta de marfim da fama que corteja antes de mais nada a vaidade e a
auto-exposição. Edgar Castro explora muitíssimo bem os recursos técnicos e
artísticos de que dispõe. Seu corpo e voz são cingidos intermitentemente pela
discreta emoção que a atmosfera dramática exige dele, ao mesmo tempo em que são
também estimulados por certo apego à razão da qual o intérprete não se
desvencilha, preocupado em demarcar uma performatividade tributária do teatro
épico. Em cena, o multi-instrumentista Juh Vieira, também diretor musical do
espetáculo, amplia a dimensão sensorial e espiritual de Dezuó, breviário
das águas, concebendo uma rica espessura sonora que remete, sobretudo, dentre
outros efeitos cênico-musicais, a um país idílico, que talvez não exista mais.
Ou ao espaço feliz de que fala Gaston Bachelard.
Se do texto emanam os registros lírico, épico e
dramático, da instalação cenográfica e dos figurinos, a cargo de Telumi Hellen,
eclodem com muita contundência, por sua vez, os fumos míticos da encenação.
Elementos primordiais como a água e a terra dominam o cenário, isolados em suas
plasticidades específicas, mas fundidos na elasticidade do barro úmido. A
cenografia comporta igualmente a presença dos reinos animal, mineral e vegetal.
Instaurados sobre uma mandala em forma de hexágono que serve de palco, altar e
templo. E de um mundo liricamente construído; dramaticamente aniquilado. É
sobre ela que o demiurgo Dezuó irá modelar a matéria de que é feita sua
ancestralidade, elegendo os pilares que dão sustentação a esse universo, para o
qual o uso de adereços singulares é em si um grande acontecimento na poética da
cena; sobre ela também, o anjo do apocalipse Dezuó irá promover o caos, a
desordem e a destruição. Acompanhamos, assim, a transição do mundo ao imundo,
movimento de reversão que os figurinos também captam muito bem, ao enunciarem
paulatinamente a vestimenta mísera, mas digna; o despojamento involuntário e o
andrajo inevitável.
Um último registro está faltando e ele advém do
trabalho da direção, de responsabilidade de Patricia Gifford. Trata-se da
dimensão ética da empreitada. A diretora combina com muita imaginação os
elementos que têm à disposição, insuflando neles o sopro de uma eticidade
sensível. Texto, atuação, trilha sonora, cenário e figurinos servem bastante
bem a propósitos essencialmente críticos, mas que passam ao largo de qualquer
proselitismo. Não há discurso; há simplesmente narração. A grande qualidade do
trabalho de Patricia é conduzir o espectador pela via da aventura que vai se
esgarçando aos poucos em desventura. Experimentada por nós duplamente: seja
pela via da dimensão sensorial de que o espetáculo não abre mão em momento
algum, seja pela via da razão a que o projeto de direção acaba nos conduzindo
com discretos engajamento e prontidão.
Para além do senso comum de que é preciso
preservar a natureza e as comunidades que vivem de seus benefícios, Dezuó,
caminho das águas talvez advirta a nós todos brasileiros a respeito de
quão falaciosa é nossa entrada no mundo da civilização técnico-industrial de
matriz europeia. Diante dos discursos que justificam a expropriação
tecnocrática dos recursos naturais do planeta beirando as raias da desfaçatez,
é preciso lembrar com Joseph Roth que “a natureza não é uma instituição”. Em
suas derivas por Berlim em 1920, o escritor e jornalista alemão observava: “O
europeu ocidental lançou-se à natureza como quem vai a um baile à fantasia. Ele
tem uma relação de capote de chuva com a natureza. Vi andarilhos que trabalham
como contadores. Não precisavam de bastões de caminhada. O terreno é tão plano
e suave que uma sóbria caneta tinteiro lhes bastaria. Mas o indivíduo não vê o
terreno suave e plano. Vê a ‘natureza’. Se quisesse velejar, vestiria
provavelmente um terno branco de seda crua, herança do seu avô, que também
velejava. Não tem ouvidos para o murmurejo das ondas e não sabe da importância
que tem o estourar de uma bolha. O dia em que a natureza virou uma estação de
águas – acabou-se”.
O mais recente trabalho do Núcleo Macabéa –
coletivo cujo nome evoca a força de resistência que há tanto na alusão à última
personagem romanesca de Clarice Lispector, quanto na relação que tal figura
emblemática estabelece com os obstinados macabeus, o antigo povo semítico que,
segundo a Bíblia, defendeu o templo no Monte Sião contra a opressão dos gregos
– convida o espectador a usufruir de uma bela fábula, mas não a se contentar
somente com a sua contemplação. “Só o que a gente pode pensar em pé – isso é
que vale”, afirma Riobaldo em Grande sertão: veredas, obra máxima da
literatura brasileira com a qual Dezuó firma seu movimento de
translação. Ao sair do espetáculo, talvez possamos refletir sobre como
serão os aromas, a maciez ou a aspereza de outros chãos que também
são nossos. E em como vivem naquelas paragens os milhões de cabras resistentes
tão brasileiros como nós. Um teatro que nos convide a pensar nessas coisas de
pé é o que conta, o que interessa, o que finalmente vale.
dezuó, breviário das águas
Por José Cetra – Palco Paulistano
Qual o potencial de montagem de um texto literário?
Essa é uma questão que sempre surge a encenadores teatrais. É claro que
dependendo da criatividade e do talento do diretor até uma lista de supermercado
pode se tornar um belo espetáculo!
Creio que numa primeira leitura o belíssimo texto do
escritor paraense Rudinei Borges não inspire encenadores pelo seu forte cunho
narrativo e pela dificuldade em criar o ambiente solicitado pela trama. O texto
conta a história do menino Dezuó que, assim como Rudinei, nasceu e morou em
cidades ribeirinhas próximas ao Rio Tapajós e à Rodovia Transamazônica e viu
sua cidade ser destruída ao ser invadida pelas águas devido à construção de uma
hidrelétrica. Após a destruição de seu lar, Dezuó muda-se para a cidade grande
onde se sente um estranho no ninho.
Patricia Gifford acreditou que o texto poderia
resultar em espetáculo e amparada em seu talento e na cenografia criada por
Telumi Hellen criou uma belíssima tradução cênica do mesmo.
Em uma plataforma circular de cerca de 3 metros de
diâmetro o menino Dezuó, munido de barro e pequenos objetos, constrói o seu
vilarejo; nada no rio criado a partir de água derramada na plataforma e mostra
a destruição do vilarejo quando a água o inunda. O ambiente urbano, quando
Dezuó vai para a cidade grande, é criado fora da plataforma em um tom cinzento
e frio. O espetáculo é essencialmente visual e sensorial e depende totalmente
do ator que interpreta o menino e narra a história. Em uma interpretação que se
soma aos excelentes trabalhos masculinos do semestre, o também paraense Edson
Castro entrega-se visceralmente à personagem lambuzando-se de barro e de água.
Somatória dos talentos do autor Rudinei Borges [que
já havia nos brindado com o poético Dentro
É Lugar Longe do grupoSinhá Zózima em 2013], da encenadora
Patrícia Gifford [da Cia. São Jorge de Variedades e mola mestra
do inesquecívelBarafonda de 2012], da cenógrafa Telumi Hellen [que
participou do CPT e foi assistente de J. C. Serroni] e do ator Edgar Castro [realizou
trabalhos com a Cia. do Latão, a Cia. Livre e a Cia. São Jorge de
Variedades]; Dezuó só poderia resultar nessa verdadeira preciosidade
que esteve em cartaz até a segunda feira 16/05/2016 na sede da Cia. Livre, mas
que já anuncia uma nova e curta temporada no mesmo local a partir de 22/05,
permanecendo em cartaz até 06/06, aos sábados [21h] e aos domingos e às
segundas [20h].
a palavra ou a morte
por Paloma Franca Amorim – Revista Eneida
No dia 5 de março foi realizada na cidade de
Altamira, Pará, a cerimônia de inauguração da usina hidrelétrica de Belo Monte.
As falas sobre o púlpito da solenidade foram todas organizadas no sentido de
exaltação do aproveitamento nacional inteiriço das riquezas naturais
encontradas na Amazônia. Perspectiva-se que em poucas décadas o país inteiro
seja atendido pelas fontes renováveis e menos poluentes, inaugurando uma nova
forma de transmissão e geração de energia elétrica.
Essa visão sobre a limpeza do produto elétrico
sustentável avança em direções globais. A então presidenta Dilma Housseff
afirmou repetidas vezes em seu discurso que o Brasil é o único país que
atualmente investe em energia limpa no mundo inteiro.
Olha-se para fora e pouquíssimo se reconhece o
impacto sócio-ambiental interno causado pela construção da usina nos últimos
cinco anos. Segundo as previsões dos engenheiros responsáveis pelo
desdobramento do projeto, Belo Monte será finalizada em 2019; dentro de quatro
anos portanto saberemos conclusivamente as dimensões dos choques
causados pelo processo de transformação social e ambiental nas áreas
atingidas.
O jornalista paraense Lúcio Flávio
Pinto afirma em seu blog que, como eixo regional produtor, o Pará
ultrapassará o Paraná tornando-se a maior estrutura de produção de energia do
Brasil.
Ao
final, Lúcio – histórico defensor do bioma e das comunidades amazônicas –
pergunta: isso é bom?
Em São Paulo, em um pequeno teatro da região
central chamado Casa Livre, o núcleo Macabéa mergulha nessa pergunta,
ofertando ao público mais interrogações sobre a questão através do
espetáculo Dezuó, breviário das águas. A peça de aproximadamente uma hora
de duração conta sobre uma família vitimada pela construção de uma barragem nos
arredores de sua vila. Ao apresentar a questão sob a ótica da personagem Dezuó,
filho de trabalhadores [o pai integra o quadro de funcionários do consórcio
construtor, por exemplo], o Núcleo Macabéa descortina uma realidade que foi
muito pouco discutida pela mídia oficial ao longo do desenvolvimento das
usinas hidrelétricas existentes no curso dos rios amazônicos, isso é, o
espetáculo aborda o tema a partir da vida dos ribeirinhos, pescadores,
migrantes, povos indígenas e campesinos impactados social, cultural e
politicamente pelo progresso energético brasileiro. Sua voz silenciada pela
colonização e neocolonização, séculos a fio, é material poético para a
dramaturgia do espetáculo.
O dramaturgo Rudinei Borges nos fala no material
de apresentação da obra: “Dezuó, breviário das águas’ não é uma peça de
teatro que escrevi sem tomar posição. É um ato poético que se põe do lado das
vozes que ouvi […]. Nesta perspectiva, pus-me [eu mesmo] defronte dum espelho
cego e me vi: amazônida, assim como sou: indígena e negro: parte da resistência
[e não separado] de minha gente. Todavia, não é uma peça de teatro escrita por
um ativista. É uma peça de teatro escrita por alguém que tenta a poesia como
norte, desafio da linguagem que brota entranhada no corpo e na vida: é a poesia
posta nas trincheiras da existência.”
Edgar Castro, ator da cena tecida em meio a inúmeros
artifícios simbólicos a nos tragar para dentro do universo dos beiradões de rio
amazônicos, se dispôs a responder algumas questões propostas pela revista.
Abaixo segue a entrevista integralmente:
ENEIDA – O tema da peça é a história de um
menino que vê sua vida totalmente transformada depois da construção de uma
barragem hidrelétrica nos arredores da comunidade onde vive. Gostaria de saber
como esse assunto chegou para o núcleo Macabéa. Quais foram os principais
disparadores temáticos para a construção da peça? Notícias de jornal? Histórias
contadas por ribeirinhos? Algum material literário?
EDGAR – O primeiro texto que Rudinei Borges me
apresentou era um texto construído, fundamentalmente, sobre as memórias de um
menino no interior da Amazônia. Sim, questões sociais já estavam ali apontadas,
mas a questão da construção da hidrelétrica surgiu em sala de ensaio, nos
desdobramentos da criação. O documentário Belo Monte, Anúncio de uma
Guerra, idealizado e produzido por André D’Elia, foi fundamental no
aprofundamento da questão.
ENEIDA – Vocês se utilizam de vários elementos da
cultura amazônica para compor cenário e a encenação do espetáculo. Dentre as
opções físicas de composição da peça, há um aspecto que é talvez o mais
fundamental da região norte: a narratividade e a oralidade [lembro-me de minha
infância dos caboclos da ilha do Marajó contando suas histórias de encantarias,
nos dando conselhos, fazendo seus ensinamentos com muita calma e precisão] que
talvez sejam a via mais profunda de denúncia. Como foram realizadas essas
escolhas formais?
EDGAR – A oralidade é um eixo central na criação
literária de Rudinei Borges, o autor do texto Dezuó, breviário das águas.
Trata-se de um campo de pesquisa e criação muito caro ao escritor, presente em
seus livros e suas peças. De minha parte, como intérprete, o épico brechtiano
foi elemento estruturador em minha formação teatral. A narratividade que induza
à reflexão, não apenas à vivência. Acredito que, no nosso trabalho, a equação
entre as questões presentes no estudo da oralidade e as questões presentes na
épica de Brecht se deu de forma bastante complementar graças, talvez, à escuta
que exercemos o tempo todo durante a preparação do trabalho.
ENEIDA – De que maneira tens sentido que o espetáculo
chega ao público em São Paulo que, na maioria das vezes, se relacionou com a
Amazônia a partir de ideias difundidas pelos grandes canais midiáticos ou por
uma visão fetichizada de flora, fauna e população?
EDGAR – Creio que a força do espetáculo
derruba qualquer percepção superficial sobre a região ao abordar, por meio uma
poética contundente [é o retorno que estamos tendo!], questões que vão para
além de quaisquer regionalismos. Então minha percepção é que o trabalho acessa
a sensibilidade do público por uma via que estabelece uma conexão profunda
entre o que está sendo dito em cena e a realidade vivida cotidianamente por
todos nós, mesmo que a fábula aponte para um local geograficamente “distante”…
ENEIDA – Na noite em que fui assistir ao espetáculo,
comentaste ao final que não iria ter golpe contra a presidenta, isso me chamou
a atenção porque foi justamente no primeiro governo do Lula que o projeto das
hidrelétricas, organizado originalmente no período da ditadura militar, foi
desarquivado como projeto do Programa de Aceleração do Crescimento [Nesse
período, Dilma era ministra da Casa Civil]. Na peça vocês comentam sobre o
consórcio da Norte Energia mas não falam do governo federal que seria o maior
responsável pelas atrocidades relacionadas à construção de barragens em nossos
rios. Como se dá essa compreensão política para o grupo?
EDGAR – Não cito Dilma na defesa que fazemos, ao
final do espetáculo, do respeito às regras democráticas. A coisa nos parece bem
mais ampla . É um consenso no grupo de que as escolhas políticas, tanto do
governo Lula quanto do governo Dilma, em relação ao projeto das hidrelétricas
na região Norte são, no mínimo, desastrosas. Mas quando nos posicionamos publicamente,
ao final do espetáculo, em oposição ao golpe institucional em curso no Brasil,
é porque temos a consciência que o que está em jogo é algo muito maior que a
defesa deste ou daquele governo. Não me interessa, particularmente, aderir ao
pensamento de uma esquerda cascuda e ressentida que prega o “Fora Todos”. É
preciso respeitar as regras da Democracia. E querer depor Dilma, sobre quem não
pesa nenhum crime de responsabilidade, é golpe. E contra ele nos posicionamos,
sim, com a máxima veemência.
-
O espetáculo Dezuó, breviário das
águas ainda ficará em cartaz até o dia 16 de março. Sábados às 21h.
Domingos e segundas-feiras às 20h.
O endereço da Casa Livre é rua Pirineus,
107, Barra Funda. [próximo a estação de metrô Marechal Deodoro]. A bilheteria abre
com uma hora de antecedência e o valor do ingresso é pague quanto
puder.
Importante assistir a esse espetáculo, sobretudo
nesse momento político agudo pelo qual o país está passando. A instância
dialética que ele nos apresenta é preciosa para uma avaliação presente de
contexto, pois se a presidenta Dilma Housseff participou ativamente de um
processo desastroso de transformação do meio ambiente amazônico, o atual
presidente Michel Temer [que exatamente na data do fechamento desse texto toma
posse durante 180 dias do mais alto posto de liderança e poder da política
brasileira] representa também uma faceta terrível que permeia a história dos
povos amazônicos: em seu governo não há mulheres, tampouco negros. Por outro
lado, há coronéis brancos, ricos, heterossexuais, patriarcas de boas famílias
de elite dos estados que a lei não focaliza. O ministério de Temer não tem
nenhuma diversidade e por isso não representa o país. Contudo, se nos pleitos
institucionais a política recrudesce, nas ruas e nos territórios da arte ela se
amplia e constitui formas diretas e sensíveis de propagação do pensamento e da
liberdade.
epístola.40
carta [des]armada aos atiradores
2016
A
tentativa de equacionar o que nos chega de uma realidade em franco
desmoronamento, de um campo social que trata os pobres a chutes e bordoadas,
território que se ergue sobre a negação ao direito mais elementar de viver com
alguma dignidade. A fábula de uma família que vaga em constante processo de
expulsão, e que mal conseguindo se acocorar numa favela enfrenta mais uma vez o
murro da exclusão, nos parece a metáfora mais adequada a um país que se vê
repetidamente despejado. Escrita a partir de memórias de moradoras da
Favela do Boqueirão, do romance A hora da
estrela de Clarice Lispector e do Primeiro
Livro de Macabeus, a peça narra a saga de uma família de retirantes
nordestinos, da chegada em São Paulo ao despejo da comunidade onde viviam.
__________
dramaturgia e coordenação [rudinei borges].
encenação [edgar castro]. atuação [alexandre ganico. andrea aparecida cavinato.
daniela evelise. dionízio cosme do apodi. heitor vallim]. cenografia e figurino
[telumi hellen]. iluminação [felipe boquimpani]. sonoplastia [dani nega].
produção [fernando gimenes]. programação
visual [renan marcondes]. fotografia e vídeo [cacá
bernardes. bruna lessa – bruta flor filmes]. assistência de direção e
preparação corporal [raoni garcia]. assistência de figurino [claudia melo].
oficina de história oral [marcela boni]. oficina de jogos grupais [rani
guerra]. oficina de cultura popular [cleydson catarina]. oficina de teatro e
imaginário [andrea cavinato]. palestra clarice lispector [gilberto martins]. revisão
de texto [airton uchoa neto]. parceria [cia. pessoal do faroeste] .realização [núcleo macabéa. cooperativa
paulista de teatro. prefeitura de são paulo. programa de fomento ao teatro]
+ crítica
O núcleo Macabéa
realizou do dia 4 de novembro a 12 de dezembro de 2016 uma série de 24
apresentações da peça Epístola.40: carta [des]armada
aos atiradores. Na sexta-feira, sábado e segunda-feira a peça foi
apresentada às 20h. Já no domingo a apresentação aconteceu às 19h. Toda a
temporada aconteceu na sede da Cia. Pessoal do Faroreste, Luz do Faroeste,
localizada na região central de São Paulo, bairro da Luz, à Rua do Triunfo, n°
301.
As apresentações foram
gratuitas e reuniram de 30 a 40 pessoas por sessão. A capacidade máxima de
lotação era de 40 pessoas por apresentação. A temporada reuniu um público em
média de 800 a 960 pessoas.
No dia 26 de novembro de
2016 o Núcleo Macabéa recebeu para assistir a peça cerca de 30 moradores da
comunidade do Boqueirão, inclusive as moradoras da comunidade que cederam as
suas histórias para a composição da dramaturgia da nova montagem teatral do
grupo.
A apresentação da peça
foi registrada em vídeo e em ensaio fotográfico.
Uma série de resenhas e
textos críticos foram escritos ao longo da temporada. Estes textos concernem em
reflexões propostas por críticos, pesquisadores de teatro e artistas.
Apresentamos a seguir um panorama destes textos que proporcionarão maior
alcance da temporada, realizada pelo Núcleo Macabéa, da peça Epísotla.40: carta [des]armada aos
atiradores.
+ epístola.40: resistência poética,
política, dramatúrgica
Por
Alvaro Machado
Epístola.40– Carta [des]Armada aos Atiradores atualiza para os anos 2010 a grande
poesia a um só tempo lírica e épica do pernambucano João Cabral de Melo Neto,
em especial a Morte e Vida Severina
escrita em 1955 e potencializada em 1965 com a música de Chico Buarque.
Desde
Canudos, há exatos 120 anos, a Reforma Agrária, anseio fundamental do povo
brasileiro, pela qual tantos sucumbiram sob o impacto de balas, é varrida
continuamente pelos ventos aziagos da acumulação financeira. Na voz condutora
da personagem Macabéa, Epístola.40
testemunha contornos hodiernos do desterramento de cidadãos e camponeses do
Norte e do Nordeste, fenômeno iniciado nos anos 1950, com a migração, muitas
vezes em conjuntos familiares inteiros, para “depósitos de homens” às franjas
de capitais do Sudeste e de grande cidades do Centro-Oeste, como Brasília a
partir de 1961. Homens perversamente destinados aos serviços e subempregos mais
insalubres, relegados a ajuntamentos precários de política sanitária nenhuma e
tornados, assim, descartáveis como laranjas espremidas.
Com
abundantes referências emprestadas do universo religioso e místico popular – já
a partir dos nomes de batismo em um núcleo familiar – e estrutura dramatúrgica
paralela à da liturgia cristã, a peça do paraense Rudinei Borges acompanha os
“passos” de Calvário desses migrantes desde sua chegada. O caso enfocado é o do
despejo à força de centenas de moradores da Favela do Boqueirão, na zona sul da
capital paulista, em 2011. A partir de então, o dramaturgo conviveu cinco anos
com essa comunidade.
Vai-se
da memória da Graça natural, no torrão natal, ao presente de inferno material
em subespaços metropolitanos geradores de comprometimento físico e moral. No
limite da sobrevivência, acontece o confronto. A violência policial é desmedida
para aqueles que ousam reivindicar terra ou qualquer um dos pontos rezados na
Declaração Universal dos Direitos Humanos, proclamada pelo conjunto das nações
em 1948, porém página a cada dia mais virada e apagada por todos os poderes do
planeta de tetas exaustas ante a avidez doentia do Capital descontrolado.
Declarado
motivo de inspiração para a ficcionalização a partir de fatos, o romance A Hora da Estrela, de Clarice Lispector
– com sua ingênua Macabéa emigrante nordestina para o Rio de Janeiro –,
sobrepõe-se, no entanto, a duas outras escrituras de alta densidade literária,
embebidas igualmente de anima
brasileira a ponto de tornarem-se culminâncias no paradigma literário do País.
São elas a obra citada de Melo Neto e os romances e contos de João Guimarães
Rosa, cuja prosódia constitui alicerce evidente da escrita de Borges, como
aliás já se percebia de suas peças anteriores, em especial Dezuó, de 2016.
No
corpo-a-corpo cênico, os motivos poéticos dessa escrita são envolvidos nas
características extraordinárias de um espaço que se poderia declarar herdeiro –
em termos físicos, intelectuais e idealísticos – do histórico Teatro de Arena
de São Paulo. Na sala principal do casarão do Pessoal do Faroeste, grupo a
comungarraízes paraenses com Borges – em um bairro da Luz também tornado “depósito
humano” –, cinco atuantes ficam ao alcance das mãos dos espectadores. A
proximidade poderia sugerir, de outro lado, estudos de emissão vocal e de
acústica capazes de propiciar sons e sentidos concentrados em alturas medianas,
de modo a valorizar tons médios e graves, via de regra sucumbidos em
estridulações que se convenciona interpretar como urgências.
Do
ponto de vista dramático, a par de acento épico brechtiano bem marcado na
Macabéa que narra em máquina de escrever a saga dessa “gente em arribação
ininterrupta”, o autor satura de paramentos estilísticos seus desvalidos, a
convertê-los em celebrantes de missa barroco-profana. Essa não é, porém, a
única dinâmica empregada, e o bem-vindo resgate naturalista dá-se pela via da
ação exterior, no último terço. No desenho de resistências e de embate físico,
os diálogos arejam-se até desaguarem na epifania final que sintetiza
harmoniosamente as vertente anteriores.
Contemplada
pela 27ª edição da Lei de Fomento Teatral para a Cidade de São Paulo, a
encenação é assinada pelo ator e diretor Edgar Castro com total entendimento da
proposta dramatúrgica. No conjunto de ações que envolve o projeto, ressalte-se
a qualidade dos materiais agregados para contar a tragédia da privação, da
exclusão e do abandono. Para além da escrita teatral requintada, o conjunto da
encenação trata seu espinhoso tema com toda a nobreza possível, do programa bem
desenhado à distribuição, sem cobrança, de bem-editado e acabado livro com
texto integral da obra; de cuidados cenográficos evidentes a seminário
dramatúrgico paralelo etc. Apenas esses cuidados, cumpridores, decerto, da
proposta apresentada à cidade via Lei de Fomento, já reverberam profundamente
no espectador, convidando-o a resgatar, não apenas na encenação, mas na
coadjuvância de tantas iniciativas e detalhes, a sagrada dignidade de
humanidades soterradas.
Alvaro
Machado – Crítico de teatro e jornalista
+
a palavra que nos move
Ou
uma leitura da peça Epístola.40, do Núcleo Macabéa
Por
Paula Carrara
Meu
primeiro contato com Epístola.40 – carta [des]armada
aos atiradores se deu pelo texto escrito. Me deparei com esse trançado de
referências míticas – anunciadas
prontamente no título pela presença da palavra ‘Epístola’ – e de contaminação literária no
desvelar de um acontecimento atual: o despejo de moradores duma favela da Zona
Sul de São Paulo. Para tanto, o grupo, que já reside artisticamente na Favela
do Boqueirão há alguns anos, se dedica à coleta de entrevistas dos moradores e
faz da narrativa oral o eixo de sua criação. ‘Deitar em letra’ a experiência
transmitida através das entrevistas traz foco às vozes que nos habituamos a ver
excluídas dos anais da história oficial, sobretudo numa cultura onde o
conhecimento é validado por sua existência enquanto palavra escrita.
O
texto registra a violência e a arbitrariedade da expulsão dos moradores de suas
casas, alienando-os o direito à moradia em nome de uma ética que, com desgosto
assistimos, orienta inúmeras ações do estado: o direito à posse e a defesa da
propriedade. O texto se faz denúncia, testemunho de uma opressão que reverbera
forte em épocas de recrudescimento do conservadorismo. E não só. No dizer de
seus cinco personagens, o texto abre mão da coloquialidade cotidiana e assume
um complexo desenhoresultado do cruzamento entre lírico, épico e dramático,
para dar contorno a uma experiência de mundo que não é apenas dura, mas também
sensível. “Córnea. Íris. Cristalino. Esclerótica.
Retina. Coróide. Nervo óptico. [...] Tudo é olho”, diz Macabéa, abertura ao
mundo que recebe ao mesmo tempo que se revela – olho-testemunha, olho-janela
d’alma, que vê ao mesmo tempo em que é visto.Também o dizer incorre em
possíveis pares de ação, como o simples fato da palavra que emito ressoar em
mim ao mesmo tempo em que procura destinatário no outro. Eu digo e escuto. E o
que eu digo revela um tanto de mim, seja pelo conteúdo, seja pela forma do
dizer. E o que se diz e o como se diz pode comunicar, informar, entreter,
ilustrar, até ser banal. A palavra pode
muito: é mediadora entre um ‘eu’, e o
‘mundo’, um ‘eu’ e outro ‘eu’. A palavra-carta-despejo-documento-oficial manda
embora a família que começou a formar raízes, tira o chão e põe em nova andança
quem não tinha escolhido andar. A palavra é essa nervura entre a pessoa e o
mundo – dita o verbo, constrói.
E é desse poder que se investe Macabéa ao
receber do pai, Judas, uma máquina de escrever antiga. Em cena seus dedos
‘atiram’ letra a letra seu próprio nome, M-A-C-A-B-É-A. Em sua ação, a
personagem anuncia uma tentativa de fugir ao anonimato que generaliza as
pessoas em números sem rosto, em categorias uniformizantes como a dos “pobres
de sempre”, diz o texto, “que os jornais e as novelas perfuram as mãos com
pregos toda sexta-feira santa”. A
personagem – que cabe notar, leva o mesmo nome do grupo – se dedica a
datilografar cartas a quem precisa, inclusive aos seus. Cada carta se anuncia
com uma espécie de princípio: “Uma dose de chuva basta para que se diga da
tempestade toda”. Ou, ao menos, parte dela. As teclas batidas em cena automaticamente
remetem aos sons de tiro, mas aqui eles não partem das armas da nossa polícia
militarizada, não miram na distância os estudantes secundaristas mobilizados,
os trabalhadores em greve ou os usuários de crack que se concentram no centro
da cidade. Esses são os sons das batidas que insistem em se afirmar como
singularidade, que defendem a importância do sujeito [principalmente o
economicamente excluído] e que vêem no reconhecimento da unicidade de cada
história um importante sinal de resistência. Nas cartas, o registro da
nostalgia de quem deixa sua terra não por desafeto, mas na peregrinação pela
plenitude da vida, promessa que jamais se completa. A vida segue nesse contínuo
arribar.
Como essa narrativa se faz viva em cena? O ato
de narrar traz consigo um constante desafio: trazer a público a palavra de um
outro, presentificar o que pertence a outro tempo, outro lugar e até outra
pessoa. E, nesse exercício, o narrador não persegue a ilusão da presença de um
personagem, mas direciona sua própria presença às palavras dos que estão
ausentes. Não é a toa que algumas histórias fixem mais à nossa mente – a
presença do narrador imprime no que diz seu próprio caráter e, acredito, está
aquimaior riqueza e o maior desafio de narrar: dar-se a ver enquanto revela o outro.
Assistindo ao espetáculo, fui revisitada por perguntas que comumente visitam a
cena teatral, especificamente o trabalho do ator,por exemplo: Quando eu [ator]
permito que o dizer do texto seja um dizer sobre mim? Onde aparecem as
impressões que o texto escrito deixou sobre o meu corpo [corpo do ator]? Que
perguntas esse texto me faz [a mim, ator]? Onde minha história e minhas ideias
ressoam no encontro com as histórias ouvidas das pessoas do Boqueirão? Como o
texto se faz palavra viva no encontro com o espectador? Durante a peça, há
momentos em que o texto flui – pessoalmente os detecto quando me percebo
diretamente conectada ao que o ator diz, como se justeza do conjunto de
elementos da cena e a palavra do ator me prontificassem à escuta. Foram momentos
em que me senti convidada a aproximar olhos e ouvidos da cena e compartilhar,
especificamente nessa peça, da sutileza da experiência humana. Mas ainda há
momentos em que o dizer do ator me distancia– momentos em que o grito e a
intensidade emulam um envolvimento com o presente ou sinalizam uma determinada
dor ou indignação. O trabalho do ator sobre a palavra é de uma artesania
constante, sobretudo quando ela se dá num território desafiante como é esse de
dar voz poética a uma situação violenta e atual.
De
fato, a própria peça parece se colocar num grande desafio. Ao adentrar o espaço
sou tomada por uma fragrância, que não sei se propositalmente ou não, me remete
automaticamente ao oriente. Em seguida, vejo os atores com figurinos que nos
remetem mais a um tempo passado que atual. Suas roupas e expressões estão
carregadas por um tom de terra, que me aproximam da imagem de ídolos antigos,
ícones de barro, enfim, imagens de um tempo e de uma tradição que não são
exatamente as minhas – nascida e criada já em ambiente urbano e industrial.
Assim, ainda que eu saiba que o despejo do qual se fala pertence aos nossos
dias, o estranhamento com essas escolhas me leva a uma reflexão: a
impossibilidade do direito à terra é uma
antiga fábula que se repete. Ao longo da peça essa ideia é reforçada pelo
conjunto de citações religiosas, inclusive das imagens associadas à via sacra
cristã. Os direitos básicos sempre foram negados aos mais pobres, desde os
tempos bíblicos, possivelmente até antes disso. Nossa história, a da humanidade,
conta com inúmeros exemplos de opressão de uns sobre outros, e não vimos essa
necessidade de diferença superada, longe disso. Ao escolher por esse território
mitológico, a encenação sem dúvida nos coloca frente ao alargamento do problema
mas, como em toda escolha, incorre também num risco: a de fragilização de
fricção com o real. Há cruzamentos muito interessantes que, do meu ponto de
vista, apontam uma vinculação que estimula o alargamento da leitura do
trabalho: o som da Tv ao fundo, a música moderna no aparelho eletrônico
enquanto tio e sobrinho conversam, a sombra provocada pelos fios de alta tensão
entremeados, e mesmo o gato do Pessoal do Faroeste que inadvertida e
tranquilamente atravessa a cena. Esses [e sem dúvida outros elementos que me
fogem à memória] são como pequenas âncoras que na oposição ao ambiente fabular
dessa família migrante, ajudam a sustentar o espanto com as situações de
opressão também do agora. Para que as palavras nos movam e mais, nos movam na
direção que escolhermos. Seguimos.
Paula Carrara – Atriz,
Pesquisadora de Teatro, Mestre em Artes Cênicas [USP]
+ sobre epístola.40:
carta [des]armada aos atiradores
Por
Allan da Rosa
Potência
da escrita é um imã, destoa no passo cotidiano, instaura a sensibilidade acesa,
a percepção do milagre de viver. Paira como nas religiões ‘de livro’, ancoradas
na Bíblia e no Alcorão. Escrita que carrega o eterno fascínio da incerteza por
estar diante do horizonte aberto no mundo com a dúvida: quem me lerá? Quem
divide a manta com quem rabisca o papel pode não arder a vista nas impressões
da página e quem mora nos longes pode vir a baforar no papel quente das ideias
que chama seus dentros, seja pra partilhar sorridente a guia escrita na folha [ou,
hoje mais e mais, na tela]. Quem distante lê pra resmungar e condenar por tanta
discordância, divergência ou desavença, e que não está diante do contador de
histórias, do cantador, da atriz que pronuncia. Quem acolherá a carta, o
exemplar, a folha desamassada depois de amanhã ou daqui 10 anos, 70 anos? Me
parece que a Dramaturgia encenada pode bailar nessa fronteira vasta, se é
caneta e mapa que brota pela lábia do ator e que se reverbera à plateia num
escambo de chamas, num respiro preso do mesmo ar.
O texto atravessado de Boqueirão
e de mais tantas favelas é uma ponte de muitas pontas. Pelo entalhe, pela
dicção e pelo timbre próprios do seu alinhavo na tecelagem das ideias, ele
oscila entre duas vias elétricas: a fluidez, mesmo que densa, e os nós molhados
desatados com vagareza na compreensão da plateia que assiste o gesto que por
vezes antecede a palavra, a complementa ou mesmo a expande. E também há as
passagens do texto que permanecem casulos, quase trancados, por sua já citada
densidade. De tanta beleza, atento às muitas carreiras e balanços da língua, o
texto é nitidamente provindo da pesquisa e do amor às curvas da língua falada
nos Brasis nordestinos, nortistas e de quebradas paulistanas, principalmente
nas bocas mais andadas, nas lábias de quem já tem há mais primaveras a casca
grossa. Questão que fica é o equilíbrio entre fluidez da compreensão do verbo,
da fala e do conjunto da narrativa dramática em momentos de tanta beleza e
poesia. Será que a leitura, por seu tempo próprio da autonomia de cada leitor,
lidaria com mais soltura e envolvência no entendimento do narrado com suas
frestas e ligas? Será que essa leveza ou esforço na captação dos significados,
diante de um texto tão formoso, vem de mãos dadas ou num passinho truncado pra
trás, florescendo na orelha e nas íris de quem se propõe a saborear e enfrentar
a caminhada? Texto que encanta a orelha e que traz o risco de exigir um tempo
outro para compreensão das ideias propostas, inda mais as de choques e
reviravoltas em argumentos chave para acompanharmos as personagens em sua
diatribe, aldeamento e revide. O entalhe do texto, oferecendo mais do que
vocabulário belíssimo, mas também uma tessitura que leva ao clímax e ao já
citado imaginário cristão, por vezes me vinha pedindo mais tempo para digestão
das orelhas e do espírito. O que traz a questão antiga e futura entre os
namoros da poesia, da prosa e da dramaturgia, por suas amplidões e, no caso da
palavra encenada, por sua função de apresentar a narrativa e mantê-la em punga,
fio tenso mas que compreende a fluidez do voo do pássaro no ar e sabe que o
pouso é também integrante do caminho.
Peitar o robô fardado, ser
arregaçado pelo aço [provavelmente estampar as manchetes ou as bocas dos
botecos como delinquente, o que justificaria o pelourinho, a tortura ou o
cemitério clandestino] e a glória de se perceber injustiçado a morrer na
peleja? Ser alvejado pelo balaço militar e ser o que ressurge, o que emerge dos
escombros barrentos apenas na vida de depois do funeral. O texto encharca-se no
prisma cristão e com certo desalento e um lanho de esperança se emaranha à
revelação, fundamento da ideologia cristã, à epifania composta na teia entre
detalhes do discurso de dentro da casa e de fora das estradas. É dentro dos
moldes cristãos e seus valores, suas óticas e discursos sobre justiça, tempo, dignidade
e também sobre família, amor e solidariedade que se erguem os pilares das
entrelinhas. E que repicam em cada linha expressiva dos intérpretes. É na
redenção dos injustiçados, na esfera que engloba desde leituras de escravizados
e mistérios do rastafári até perspectivas e liturgias da teologia da
libertação, é ali que está o miolo da epístola. Desta vez, se não aos
coríntios, a quem ela voa?
A época é de antenas via
satélite orquestrando nossa raiva, colhendo o que frutifique de lucrativo em
nossa tristeza, embarreirando qualquer broto de rinhas por justiça que viesse
de nossas mazelas. A época é de novo e de novo de rebanhos que enchem bolsos de
pastores que agora não mais ocultam a baba odiosa. A necessidade de teto, de
moradia, encontra o nojo de outras pessoas que também equilibram o dia para não
mofarem desabrigados. O sol que trinca moleiras da molecada na rua, que balança
saias e sopra o fumacê da maconha nas beiradas de terrenos baldios, também
ferve rancores e cansa o cangote de quem agora nem mesmo mais deposita
resignado votos de forte esperança em messias de gravatas, de sindicatos ou de
partidos. Porém, a descrença que gangrena apenas não domina toda a época porque
há quem desobedece e assim não se lesa nem se amortece na monotonia vampirizada
de cada dia.
O chão da peça alumia, como se
retornasse à promessa da terra cultivada e as quenturas que vem dos tubérculos,
os combustíveis que vem de frutos e legumes, num tempo em que barões não
monopolizem cultivos em terras vastas que nem conhecem a cada metro; e que quem
lavra terá como ninho que provê. Prevalece
em cena a simplicidade efetiva de figurinos e de cenografia, o trato e o
equilíbrio na interpretação, mesmo que para desaprumar quem chega. A musicália
que umedece ou retesa o espaço onde giram os corpos que se curvam e se
alevantam. Teatro de corroer a memória oficial, a que patrocina a agonia, o
despejo, a vala.
Na cabeça iluminada do menino
Auarã, morto como um Cristo pelos cães fardados de quem manda no carteado
podre, seja o Rei ou a Burguesia, ressoa uma razão que cintila mas se acende
pelos raios do coração, pelos brilhos na casca da sola, pelas fendas do corpo
testado no sol e na fome. Áfricas e Brasis já há tempos nos mostram fartamente,
e sempre surpreendendo, como a plasticidade das religiões, seja a cristã ou a
islâmica, se molda e se recria ao que o barro e os palacetes de cada lugar
instalam. Este jeito esponjoso que assimila e que abençoa, que garante
princípios da força vital personificada e que também é obsessiva ou missionária,
ressoa na feitura menina de Macabéa em seu teclar na máquina de datilografar,
hoje já arcaica. Ressoa na personagem que colhe e reelabora o que vem com
ímpeto entre o medo, a raiva e miúdas alegrias. Migração e peregrinação,
arrumação de moradia, luta em riste em meio à resignação diária salpicada de
ira. A redenção do tempo histórico, como na passagem do santo Cristo que eleva
a Terra ao seu aspecto sagrado e a descola do profano, ao mesmo tempo em que a
percebe engalfinhada no mundano da ganância e do que seja então proposto como
pecado. Sinto na peça a costura de versões que questionem o despejo, o chute
que escorraça e a marreta que demole, orquestrados por quem tanto reza aos
domingos e também fala em nome de Deus em uma pretensiosa lida de ordenar a
cidade e livrar os cidadãos de bem das ervas daninhas. Despejo que pouco se
lasca se é na beira de córrego ou na lona na praça que se enlouquece e que se
devastam sutilmente uma família, uma cidade e um continente inteiro. Peça que
utiliza das mesmas balizas messiânicas num teatro sem milhões de artifícios,
mas que de bocadinhos cria cosmos e securas. Que miúdo é imenso.
Allan
da Rosa – escritor, historiador, angoleiro e pedagogo.
+ de quem são as vozes que falam?
Por Pedro Braga
A
dramaturgia contemporânea é marcada pelo hibridismo de gêneros, linguagens e
estilos. É como se, após o florescimento da performance dos anos 60 e 70, após
o proclamado fim da história da arte e da representação [1], o teatro de grupo dos anos 2000
estivesse recuperando o que lhe importa dos mestres do passado para produzir
amálgamas polifônicos que, em muitas camadas de texto, tentam dar conta da
realidade complexa que é essa nossa, de um capitalismo na sua forma mais vil.
Não
se trata, portanto, de dizer que o teatro épico de Brecht esteja superado, ou
mesmo que estejam superadas as formas do drama ou as experimentações
vanguardistas do início do século XX. Não se trata, ainda, de uma recusa de
olhar para as formas populares, como o teatro de revista ou o de Shakespeare. A
dramaturgia contemporânea opera sobre um caldeirão de referências, sem ser fiel
a nenhuma delas, mas, como um ecumênico, aproveitando de cada estilo, de cada
gênero, aquilo que ele tem de melhor para dizer o que precisa ser dito.
Trata-se de uma dramaturgia de múltiplas vozes, líricas, épicas, dramáticas,
performativas, que se alternam sem pedir licença, sem grandes quebras de
distanciamento. A voz que narra, em um segundo, no outro já fala dramaticamente
e no seguinte já divaga sobre palavras poéticas.
Como
todo experimentalismo formal, esta dramaturgia produz equívocos, mas também
pérolas, complexas e profundas em sua pluralidade de vozes. Epístola.40, carta [des]armada aos
atiradores é uma dessas pérolas. O texto de R. Borges passeia livremente entre
os gêneros épico, lírico e dramático, como uma gaivota que, graciosa, ora está
pousada sobre um galho, ora mergulha no mar, ora sobrevoa os céus.
A
peça fala sobre a realidade do despejo. Pessoas que vieram, migrantes, das
regiões Norte e Nordeste do Brasil, despejadas de suas terras não por um
alguém, mas por todo um contexto que é social e político, e chegam ao Sul para
povoar as muitas periferias dos centros econômicos do país. Ali, nos cantos,
onde não há rios grandes como o Capibaribe ou o São Francisco, mas apenas
filetes de água suja, essas famílias constroem suas casas e suas vidas, vivendo
da caridade de uns, da clandestinidade do roubo de uma luz elétrica, mas
sobretudo do seu trabalho.
E
ali vivem até serem despejadas por uma carta da prefeitura que lhes informa que
aquele pouco que têm, que conquistaram, não é seu por direito, mas de
outro: que já tem muito e quer ainda
mais. E o Estado, este senhor maior, ao lado de quem já tem poder e dinheiro,
vem despejar essas famílias usando toda a truculência, toda a violência de quem
não vê [porque não quer] que foram essas pessoas, as das favelas, boqueirões e
periferias, que construíram, com o seu trabalho, as casas, as ruas, os prédios,
as grandes avenidas.
Borges
constrói essa narrativa em camadas: a primeira camada é a das personagens
dramáticas da família em questão, Misael, Nazara, Judas, o menino Auarã e sua
mãe Macabéa; a segunda é a narração, e aqui existe uma subdivisão entre a
narração da memória, também proveniente das personagens, e a narração mais
externa, onisciente que, embora se envolva com as personagens, não se confunde
com elas; a terceira, por fim, é a lírica, em que as personagens transbordam a
poesia do seu desassossego e da sua desesperança, palavras essas que jamais
sairiam da boca dessas pessoas, em um contexto realista, mas que traduzem
perfeitamente a profundidade e a complexidade dos seus sentimentos de mundo.
Feito
a partir de narrativas orais dos moradores da Favela do Boqueirão, mas sem
jamais assumir um tom documental, o texto de Borges assume um olhar que até
poderíamos chamar de romântico sobre suas personagens. Romantismo esse que se
observa num certo grau de idealização, pintando essas personagens ora como
pessoas humildes, ainda que sonhem alto, ora como heroínas de um ato
revolucionário. Conforme a narrativa avança, as camadas dramática, épica e
lírica nunca deixam de se alternar, mas é verdade também que o tom subjetivo,
delirante, sonhador do texto, prepondere sobre os demais conforme vamos nos
aproximando do desfecho da história.
A
interlocução do texto com a obra de Clarice Lispector é notável, uma
devoção/homenagem bonita de se ver. Além da personagem homônima Macabéa, também
menções à Hora da Estrela e ao seu
narrador, Rodrigo S. M., são constantes da peça. Enquanto a Macabéa de
Lispector é introvertida, anti-heroína, retrogonista[como
diz o próprio Borges no programa do espetáculo], a Macabéa desta Epístola é
mais que heroína, é guerrilheira, da escrita e da vida. Enquanto o Rodrigo S.
M., de Clarice, nutre por sua personagem uma obsessão doentia, o de Borges nem
conhece a sua Macabéa e, como força externa, onipotente, acaba corresponsável
pela morte do filho desta.
Mas
essas tantas vozes que se cruzam, entre cenas dramáticas, narrações e poesia,
interlocuções com um texto canônico da literatura brasileira, a pergunta que
fica é: que atores serão esses, da contemporaneidade, capazes de dar conta de
uma dramaturgia tão fluída entre gêneros e linguagens?
Pois
não se trata apenas de resolver o problema com um treinamento específico para
atores, que os ensine uma habilidade específica como cantar, dançar ou fazer
mágicas e acrobacias. Trata-se de criar um ator capaz de, como a gaivota
supracitada, transmutar com destreza entre nichos distintos, entre tessituras
tão diferentes da linguagem.
E
digo isso conhecendo plenamente das habilidades para tal do diretor Edgar
Castro que, na obra anterior deste mesmo Núcleo
Macabéa, como ator, conseguia manobrar entre os meandros do texto de Borges
com a destreza que a sua experiência lhe confere. Contudo, será que as escolas
de teatro, cursos técnicos e profissionalizantes, ou mesmos as faculdades de
artes cênicas que ora se proliferam pelo Brasil, dão conta de formar os atores
para esta nova dramaturgia que surge pelas mãos não só de Borges, mas também de
Cássio Pires, Newton Moreno, Vana Medeiros, Leonardo Moreira, Alexandre Dal
Farra e tantos outros?
Observo
a formação do ator aprisionada a duas generalizações perigosas: de um lado, o
modelo tradicionalista, mais difundido, que ensina os atores a interpretação
dramática-realista como única possibilidade cênica, desenvolvendo aqui e ali
habilidades extras [com pouca profundidade] para o circo ou o teatro musical;
de outro, uma pretensão de um ensino sem-modelos, como se o ator contemporâneo
prescindisse de bases e como se toda miríade de técnicas e procedimentos para o
ator, desenvolvidos ao longo de séculos de tradição, estivessem ultrapassados e
este ator-criador-dramaturgo contemporâneo [imagem demasiado abstrata] fosse
capaz de criar sua própria técnica a partir do nada.
E,
no caso específico de Epístola.40,
apesar do engajamento político e estético nos atores do núcleo, que nitidamente
compreendem a profundidade e o peso do tema que tratam, esta dificuldade do
ator jovem [de vida e de profissão] em lidar com a complexidade formal da nova
dramaturgia se evidencia. Não a ponto de prejudicar o espetáculo, também porque
a força e a paixão com que todos abraçam a causa da peça não permite, mas a
ponto de nos fazer pensar justamente sobre que ator é esse, para essa nova
dramaturgia que emerge, para não cairmos em atuações que generalizem e
simplifiquem essas múltiplas vozes tão bem construídas no texto.
Na
encenação, Edgar Castro resolve comprimir as personagens na exígua geografia de
seu barraco, onde as personagens comem, dormem, trabalham, rezam, brincam,
sonham. Se no plano dramático essa compressão é extremamente verossímil e
justificada, nos planos mais épicos e líricos da narrativa, a arquitetura do
barraco se dissolve para dar lugar ao campo de batalha, às barricadas da
população contra a polícia, ou aos céus, para onde a alma do menino Auarã sobe
quando morto pela polícia.
Aliás,
é notável que a cenografia, sonoplastia e iluminação mostrem compreender esse
desejo da encenação de aprisionar as personagens no cubículo do barraco,
fazendo desta uma experiência ainda mais claustrofóbica. Enquanto Telumi Hellen
achata as personagens entre pallets ao chão e fios no teto, Felipe Boquimpani,
além de criar incríveis ratos de luz que ganham vida sobre as frestas da
madeira, se aproveita dos fios de Telumi para dar vida às cenas com os típicos
“gatos” e “gambiarras” das favelas e Dani Nega se utiliza de sons reais de
relatos de pessoas em situação de despejo, dando a dimensão épica daquilo que
se vê e que acontece no exterior do barraco.
São
múltiplas vozes, ora convergentes ora dissonantes, mas que criam, no conjunto,
uma obra sensível e coesa, necessária aos tempos sombrios em que vivemos.
Pedro Braga – Ator e diretor de teatro
+ epístola.
40: carta [des]armada aos atiradores
Nossa Vida Morte Renascimento
Por Solange Dias
Abordar no teatro temas sobre
os excluídos, sobre os que vivem à margem, sobre aqueles que constroem
trincheiras contra opressores poderosos infelizmente, soará sempre atual.
Afinal é um conflito interminável, é um jogo que não se desarma. Mas então por
que continuar falando sobre isto? E se não falarmos, o que nos sobra? Se o
teatro é um fórum de questionamento constante sobre o ser humano, o que fazer
com estas discussões em nossas mãos? São as nossas armas de resistência para
não enlouquecermos e não nos esquecermos quem somos? Gente? Talvez o teatro não
seja mais o lugar de falar apenas da doença, mas utopicamente seja o nosso
lugar de purgação, nosso lugar de cura. E Epístola.40:
Carta [des]armada aos atiradores mostra e busca curar nossas dores. Na
belíssima montagem que surge do texto de Rudinei Borges, com encenação de Edgar
Castro e atuações dos integrantes do Núcleo Macabéa, onde todos os elementos
conversam harmonicamente entre si, não vemos apenas migrantes nordestinos sendo
despejados e até mortos por ações truculentas e desastrosas da polícia. Não são
apenas famílias inteiras despojadas de sua dignidade, de seus barracos, de seus
cantos periféricos esquecidos em algum oco da cidade grande. É muito mais.
Em determinado momento da peça
vemos a personagem Macabéa, fusão inspiradora de Macabéa-Clarice-buscando seu
lugar no mundo e Macabeus-migrantes-resistentes que, ao poeticamente “catar
milho” com os dedos numa máquina de escrever, constrói letra a letra, palavras
que dão significado a uma vida em construção para si mesma e sua família. Com
suas palavras busca construir o mínimo, o básico: um pequeno pedaço de chão,
“uma parte que te cabe deste latifúndio”, pequenos sonhos de um cotidiano
escondido na boca de um Boqueirão. Macabéa e sua família – Nazara, a Mãe;
Judas, o Pai; Misael, o Irmão e Auarã, o filho - lembram cada qual uma ponta de
estrela buscando brilho emprestado de um sol que teima em não surgir em suas
vidas. Mas o teimar é resistência, faz parte deste jogo de [des]armar. No
início, estas pontas são seres tão pequenos buscando não incomodar, que quase
pedem desculpas pelo ato de existir. Meu Deus, eles só precisam do básico! Mas
quando se dão conta de que lhes será tirado até isto - o chão aonde vivem - o
mundo gira e então, eles se tornam gigantes. Então da resistência surge a
rebelião e o grito preso na garganta ecoa através de uma criança super-herói
mágica, nossa transcendência, nossa utopia ou nossa arte, ou seja, nosso motivo
de fazer o que fazemos.
A meu ver, o brilho do sol, a
purgação, a cura surge com o Cristo-Sol Auarã e sua anunciação final emendada
com a primeira carta de Macabéa. Tanto ele como ela se pronunciam através de
renascimentos a partir da morte: “Na terra seca onde dorme o menino Auarã vai
nascer flor de cacto...” diz ele, “... mas escrevo esta carta tardia, Auarã,
/Pois queria dizer um pedaço/ Da fagulha que luzia nas marés..., diz ela .
Se em Morte Vida Severina de João Cabral de Mello Neto, que trata de
retirantes em busca de um chão pra se viver e não morrer, o nascimento de uma
criança impede a morte de um Severino, em Epístola
40: carta [des]armada aos atiradores é necessário o sacrifício-morte de uma
criança para que nós não terminemos desistindo.
Poeticamente é pela travessia
vida-morte-renascimento é que podemos tentar uma nova proposta, uma nova forma
de refletir este mundo, nem que seja construindo novamente letra a letra em
máquinas de escrever antiga, uma primeira carta. Talvez tenhamos que começar
tudo de novo, com um olhar assim infantil de Auarã. Se a arte e, principalmente
o teatro, se propõe a se armar desarmando assim, pode ser um bom jogo pra se
jogar.
Vida longa ao Núcleo Macabéa!
Que continuemos a pensar sobre nós mesmos com poesia e bom teatro!