Tive ouro, tive gado, tive fazendas.
Hoje sou funcionário público.
Itabira é apenas uma fotografia na parede.
Mas como dói!
Hoje sou funcionário público.
Itabira é apenas uma fotografia na parede.
Mas como dói!
(Carlos Drummond de Andrade – Confidência do Itabirano)
Migração – palavra tão desgastada. Incerta em quase tudo que anuncia:
peleja – sobretudo. Nome, sem batizado, de quem se põe em passagem. Procissão
das gentes que vão em travessias, de paragens em paragens, à procura de um
canto no mundo. Canto outro que não é mais o de origem, que não é mais a terra
natal – terra falha que, mesmo armada em escombros, é lugar de aconchego, onde
nos damos por gente na vida, arrodeado de pai, mãe, irmãos, avós e outros
parentes tantos. Da terra para onde vão, estes que chamamos migrantes, não se
sabe que arroio será. Nem se dará fruto a vida nestes campos outros. Todavia,
intenta-se seguir sempre, numa tessitura de itinerários, os mais distantes, que
percorrem o país de ponto a ponta.
Eu mesmo nasci filho de migrantes. Gente que foi para o norte
irredento sem saber que desvelos se dariam numa parte ainda não entranhada da
Amazônia brasileira. Nasci nas beiradas da Rodovia Transamazônica, estrada
inventada pela Ditadura Militar como a promessa de um país próspero. De
próspero não havia nada naquelas bandas, porque não se pode chamar de prosperidade
a destruição da floresta, a expulsão dos povos indígenas de suas terras e o
modo abrupto como foram enganadas incontáveis famílias de colonos que para lá
foram em busca de tempos melhores. No entanto, ali, no improviso do abandono,
isolados do restante do país, migrantes do nordeste e do sul do Brasil,
fincaram os seus sonhos. Muitos, como eu, são filhos desta travessia, gente
morena nascida do barro do começo do mundo. Mas algo ali se deu como fato:
todos eram migrantes. Gente que veio de fora – como diziam alguns. Forasteiros,
assim nos chamavam os que queriam nos diminuir. Desterrados – como se não
fôssemos de terra alguma.
Já crescido, na ânsia de embrenhar-me no mundo, tomei-me por
migrante, irmão de outros tantos que partem para qualquer paragem que se
assemelhe à terra prometida. Subi até Santarém, oeste do Pará, num barco. De
Santarém à Belém, capital do estado, foram três dias num navio. Mais dois dias
num ônibus de Belém a São Paulo, numa viagem que atravessou os estados do
Maranhão, Tocantins, Goiás e Minas Gerais. Isto tudo para chegar na
Rodoviária do Tietê, o templo mas infecundo da maior cidade da América do Sul,
e contemplar um dia frio e chuvoso, de céu cinza. Na cabeça, entre a
curiosidade e a decepção, só restava uma pergunta: que diabos fazer aqui?
Porém, foi exatamente aqui, que dei por certo ter vindo de uma
terra inexistente, algum lugar que está no imaginário da maioria das pessoas
como campo minado, distante de tudo. Que acima de Minas tudo é nordeste. Que a
partir daquele instante, quando pisei aqui, não me era mais cabido ser
amazônida. Descobri que somos todos nordestinos quando chegamos aqui, mesmo sem
sequer conhecermos o sertão e a caatinga. E mais ainda: somos todos baianos,
abaianados, mocorongos, arigós e paraíbas quando chegamos aqui. Isto num
sentido pejorativo, desdenhoso, infantilizado e humilhante. Representamos a
força do atraso, um país rústico, simples, pobre e desprovido da cultura das
grandes metrópoles. Mal sabem eles que nada está mais próximo das origens que o
arcaico. Descobri que a partir daquele instante, quando pisei aqui, nunca mais
poderia abrir a boca sem que me dissessem: Você-não-é-de-São-Paulo. Descobri
que a partir daquele instante, quando pisei aqui, sempre me perseguiria o
mantra: Por que você veio de tão longe? Por que não ficou lá a comer jambu,
beiju, pirarucu? Descobri que aqui nós, “os baianos”, somos a maioria de
pretos, moradores de comunidade periféricas. Formamos o grande exército dos
serviços gerais, dos ônibus e trens lotados, dos hospitais, igrejas e escolas
públicas. E talvez – infelizmente – estejamos também na lista duma maioria que
habita as cadeias. Isto tudo a contragosto dos programas televisivos que nos
põem a obrigação de uma vitória desenhada e assistida: aquele que venceu na
vida. Eles debocham de nossas histórias e nos põem em seus quadros e nos dizem
quase que diretamente: voltem para as suas terras.
Assim, na condição dos que incomodam, dos não vitimizados,
degredados filhos de Eva, é que raio a raio nós, “os baianos”, compomos auroras
e cingimos a cidade com aquilo que em nós é fé e peleja, que em nós é ofício e
festa, que em nós se transfigura como canto de andorinha, como canto de arigó.
Esta ave de arribação que habita as lagoas do sertão nordestino.
Depois de dez anos em São Paulo, tudo que veio em mim está em mim
mais que antes, às vezes como confissão de itabirano, de itaitubense. Mais que
antes a consciência donde vim germina em mim e me move. Não como saudosismo ou
nostalgia bucólica. Todavia, com a certeza de que não sou daqui. E é exatamente
esta certeza que me faz atravessar o Viaduto do Chá com a convicção que fiz
desta outra terra a minha morada e ela me interpela, me aponta caminhos no
turbilhão de tudo que é e representa.
É desta completude da Amazônia distante (e presente) e da minha
cidade, terra outra, com seu concreto a encher os olhos, que atento para o
perigo da palavra e tento a composição do poema. Decerto, não seria o mesmo
poeta se não tivesse migrado. Decerto, não teria a mesma coragem se não tivesse
posto aqui os pés e o resto do corpo, se não enfrentasse a dizimação
encantatória que só as terras outras podem oferecer. Com isso, não me vergonho
do que sou, da minha fala, do meu rosto, do meu corpo, do meu ser, pois tudo em
mim trás os descaminhos de onde vim, de onde estou e para onde vou – mesmo que
não saiba. São as travessias que nos movem, nos envolvem e nos enamoram que nos
fazem sentir saudades da vida que foi e estar por vir. A vida, esta doida da
praça, desmiolada inquieta, é que nos põe a gostar do mundo. Não fosse o amor
pela vida, espécie de paixão desmesurada, não poríamos os pés fora de casa,
ficaríamos o tempo todo na cama. É a vida que nos atravessa resguardando que
vivamos nesta ou noutras terras, como bons arigós que somos.
Rudinei Borges | 2014