Carta para Manoel de Barros

Hoje completei 10 anos. Fabriquei um brinquedo com palavras. Minha mãe gostou. É assim: De noite o silêncio estica os lírios. (Manoel de Barros)

Guardo, defronte do asfalto, o rosto dum menino do mato, um menino de vinte anos, jovem como as pedras de vinte anos, um menino que não envelhecia, um menino que esmiuçava aquilo que não tinha nenhuma serventia, os versos – em alento – dum poeta dos campos, lá para os pântanos do oeste, um poeta dumas oitenta estadias, que conversava com a brisa e os pássaros, um poeta, um mago, ser que desencantou do limo e veio para as minhas mãos e de lá – num mistério – nunca mais saiu.

Guardo, em retalhos remendados, de tão folheado que foi, um livro sobre nada. E, entre gravetos daquele alfarrábio, guardo aquela máquina que serve para não funcionar; aquela máquina que, quando cheia de areia, de formiga e musgo, pode um dia mi-la-grar de flores – como dizias.  

O que era aquele menino, Manel, senão um beato em violetas? Um beato que arredou os pés do Tapajós e trouxe para o Tietê as latrinas desprezadas que servem para ter grilos dentro. Não eram minhas as latrinas. Não eram minhas as violetas. Eram tuas.

E se o dia, hoje, vai morrer aberto em mim é, decerto, por razões ínfimas: me vi em ti e tudo o que eu queria era, confessadamente, ser um pedaço teu. Uma asa, talvez. Um dedo do pé – aquele dedo cheio de calos vindo de Corumbá. Mas – eu sabia irredento – era apenas um menino que chegava com o corpo franzino meio à garoa, risonho e tímido, carrancudo no mundo. Só via a poesia na saudade dos remos, do sol forte de Itaituba. Nada me prendia ao que eu era, aos vintes anos. Tu é que me fazias voltar para mim e olhar a minha desutilidade poética, o meu dessaber, menino velho de quintal cheio de mangueiras e jambeiros. Menino do fim do mundo, filho de Rosalva, porque “o olho do gafanhoto é sem princípios”.

E, agora, sei, voltas donde sempre esteve, às distâncias. “A gente brincava com terra”. E por brincarmos com terra, de todos os tipos, éramos irmãos em tudo, até doer a alma. Do teu silêncio guardo a tua palavra, a tua máquina de escrever passarinhos, a tua máquina de administrar o à-toa, de retirar semelhanças de pessoas com árvores, de pessoas com rãs, de pessoas com pedras. E, guardo, sem esquecer nenhum instante, que todas as coisas apropriadas ao abandono te religam a Deus. Disso não esqueço.

p.s: sim, era no ínfimo que vias a exuberância.

Rudinei Borges | São Paulo, 13 de outubro de 2014