Carne febril das tardes – Breviário 2
[A menina abre a mala
surrada e mostra a fotografia da avó]
MENINA DE
CABELOS NEGROS LONGOS – Minha
avó morreu num dia bonito. Era um domingo chuvoso. Eu não tinha ninguém para me
acompanhar até o hospital. Não sabia andar de ônibus. Mesmo assim fiz uma
viagem até o hospital. Fui lá & conversei com minha avó. Foi a primeira vez
que eu disse: Vó, eu te amo. Arrumei o cabelinho da minha avó. Dei um abraço
forte em minha avó. Levei minha avó até a cama. Tinha certeza que minha avó
sairia do hospital no dia seguinte. Fiquei o tempo que podia no hospital.
Quando fui embora, ao me despedir, minha avó perguntou: A AVÓ – Que horas são,
filha? MENINA DE CABELOS NEGROS LONGOS – Dezesseis horas, vó. A AVÓ – Quanto tempo você vai demorar para
chegar em casa, filha? MENINA DE CABELOS NEGROS LONGOS – Duas horas, vó. A AVÓ – Então, vai logo. Sua viagem é longa,
filha. MENINA DE CABELOS
NEGROS LONGOS – Sei, vó. Está muito longe,
vó. A AVÓ – Apaga a luz que agora eu vou descansar, filha. MENINA
DE CABELOS NEGROS LONGOS – Quando
cheguei em casa, às dezoito horas, quando cheguei em casa, o telefone tocou.
Minha avó havia falecido, às dezoito horas. Não estava mais comigo. MENINO –
Quando a menina chegou em casa, às dezoito horas, quando a menina chegou em
casa, o telefone tocou. A avó da menina
havia falecido, às dezoito horas. A avó da menina não estava mais com a menina.
MENINA DE CABELOS NEGROS LONGOS – A minha
avó resolveu repousar como quem dorme no céu entre estrelas. Como quem brilha
miudinha no céu entre estrelas. Como quem brilha miudinha sobre o mar. Minha
avó-menina, minha avó resolveu repousar. [Suspensão] MENINA COM VOILE ACOCORADA
NO CHÃO IMENSO – lembrar
é acocorar-se
dentro da vida
como quem
acocora
na ventania
como quem
olha o céu
e as estrelas do céu
como quem
guarda nos olhos
uma estrela
miudinha
entre
MUNDARÉU
de estrelas
lembrar
é guardar
o lugar certo
onde esta estrela
brilha
lembrar
é cultivar
com o olhar
esta estrela
todas as noites
é enamorar-se
desta estrela
de tal modo
que esta estrela
só dormirá
miudinha
no céu
depois
de olharmos
para ela [Suspensão.
Surge
um
menino
com uma estrela dentro duma garrafa] MENINA
COM VOILE ACOCORADA NO CHÃO IMENSO –
[Sussurra] Menino
Onde
você encontrou esta estrela
Menino?
[com o olhar entristecido] MENINO – na minha terra. Encontrei esta estrela na
minha terra. Sempre que as mães seguem para o alpendre das casas & fazem
cafuné nos filhos, nos meninos, surge uma estrela no céu. Ando com esta estrela
numa garrafa para não esquecer de onde vim, o que fui, o que sou. [Todos
aparecem com estrelas dentro de garrafas] Para não me perder na noite
escura-escura. Muitos já se perderam no caminho. No breu do mundão. Não quero
me perder. Mas agora-agora estou na estrada: de volta. De volta para casa. Para
reaver nossa mãe, nosso pai (que já foi) & os meninos que corriam comigo
nos campos de asfalto. & quando eu chegar, chegar outra vez na terra de
onde vim, vou soltar esta estrela. Esta estrela vai brilhar no céu, sobre nossa
casa. & só nascerá outra estrela quando a mãe for ao alpendre, quando o
menino deitar no colo da mãe, quando a mãe tecer cafunés, quando o menino
chorar, quando o menino bradar aos ventos: mãe, encontrei. Encontrei a
claridão. [Suspensão] Só nascerá outra estrela quando a mãe do menino disser: A
MÃE – Filho, se tens claridão, mostra a tua claridade. [Surge uma multidão
levando estrelas dentro de garrafas. As estrelas
brilham. A
menina com voile acocorada diante do chão imenso acende uma lamparina &
cobre-se com um tecido leve e fino] MENINA
COM VOILE ACOCORADA NO CHÃO IMENSO –
[Entristecida] sempre
tenho labutado tanto
sempre
tenho vivido vazantes
tantas
sempre
tenho curado cicatrizes
tantas
sempre
tenho amado tanto
sempre
tenho vestido voiles tantos
sempre
tenho acendido
lamparinas tantas
sempre
tenho colhido estrelas
tantas
sempre
estrelas
feito alvoradas tantas
sempre
estrelas
feito acalantos tantos
sempre
estrelas
feito marés tantas
sempre
tenho
rezado pelo mundo
sempre
tenho
rezado por meu pai
sempre
tenho
rezado por minha mãe
sempre
tenho
rezado por meus irmãos
sempre
tenho
rezado por mim
sempre
a
vida é andança
sempre
a
vida é estirada
sempre
[Breu longo]
[Choro de menino que nasce]
Breviário 2 da peça Dentro é lugar longe | Rudinei Borges | 2013