1.
quero lembrar
como quem lembra
dum menino
que brincava
com cordeiros
no alto da colina
2.
guardo
o teu acalanto
dentro das tardes
das marés
da violeta-menina
deixo
aberta a porta
o sol entra na
casa
e acocora a
ventania
toda manhã
3.
toda manhã
meninos plantam
vaga-lumes
no campo minado
e colhem toda
manhã
fagulhas
fogueiras
4.
toda manhã
meninos garatujam
a terra batida
e correm ladeira
abaixo
com sonhos
luz-
indo
5.
a
menina
que
plantava roseiras
esta
manhã
colheu caracóis
6.
como os caracóis dançavam
ao re-
dor da cacimba da vó Alzira
em tempos de chuva
eu vi
7.
o menino
amava o segredo dos tempos
a calmaria das águas
o silêncio do chão
se embrenhava na mata
voltava
com auroras nos ombros
arrebóis nas mãos
8.
queria
que me
contassem
uma vez
que me
contassem
em sussurros
que me
contassem
os segredos
mais secretos
9.
o silêncio
do meu
silêncio
é Estrela
Dalva
pequenina
no céu de
terça-feira
10.
diz
em sussurros
por onde anda
a tua estrela
cadente
em sussurros
por onde anda
a tua estrela
cadente
diz
11.
rezo
com a voz das pedras
ao pé do ouvido
creio
ter encontrado Deus
num paiol
12.
terei sede de Deus
no mormaço
das andorinhas
13.
um dia
terei olhos de onça
voo de maracanã-guaçu
voo de choquinha-de-peito-riscado
voo de formigueiro-de-yapacana
neste dia
o vento
dormirá nos meus ombros
14.
a doença
é uma dança
que vai e vem
dentro do corpo
uma
bailarina
é uma dança
que vai e vem
dentro do corpo
uma
bailarina
15.
morrer
é um modo
de viver
sem poder
dançar
16.
o passado
escorre pelos olhos
escapa pelas mãos
e quando menos esperamos
regressa
como se dormisse
apenas
17.
vi(ver)
é
(des)acontecer
18.
só
os que
partem
hora ou outra
sabem
cedo ou tarde
quão
solitários
somos
19.
só
o corpo
fecunda
na terra
a flor
a fagulha
da tarde
20.
e
depois com um lápis
prenunciar
paredes
jacintos
janelas
tamboretes
panelas
pedras
altares
olhos
pardais
mariposas
vinis
e
21.
e perder pelo braço
e cair pela boca
e descer pelo ombro
e dormir pelo peito
e fugir pela palma da mão
22.
re-
ceio
a seiva/
cio
ceio
a seiva/
cio
23.
ad-
vogo
a vertigem/
lodo
vogo
a vertigem/
lodo
24.
era
raio
e
ria
o
sol
raio
e
ria
o
sol
25.
mãe
feixes
de mar
esculpidos
nos
olhos
26.
só
precisava
dum fio
d’água
para
amanhar
a tarde
abraçar
a noite
esquecer
que o
tempo
tem
pavio
curto
27.
amar é
disposição
ao
desacerto
fazer
dançar
boquiaberta
no
coração do tempo
a
dúvida
fazer
durar
o que
parece ser
um
s-e-g-u-n-d-o
– apenas
28.
o pior
não é perder
ou ganhar
o pior
é o vácuo
que se estabelece
entre uma coisa
e outra
não é perder
ou ganhar
o pior
é o vácuo
que se estabelece
entre uma coisa
e outra
29.
alumia
no dia ha-
verá
travessia
30.
entre
coragem
e medo
um minuto
meio termo
31.
queria cantar
um cântico pequenino
um cântico-andorinha
um cântico-curió
um cântico-sabiá
mas não sei
cantar
32.
tornei-me um porto
com barcos
que vão a todos os lugares do mundo
Poema do livro Memorial dos meninos | Rudinei Borges | 2014