[Os
meninos cantam à volta da fogueira]
[Suspensão]
MENINA
DE CABELOS NEGROS LONGOS
Quando menina tinha verrugas nos
olhos. Nenhum remédio curava aquelas verrugas. Minha mãe amarrava fio de
cabelo. Uma vez acordei com o olho inchado porque inflamou. Nada curava aquelas
verrugas. [Sussurro] Tive uma conversa muito séria com Deus. As verrugas desapareceram.
MENINA COM VOILE ACOCORADA NO CHÃO IMENSO
Da minha janela avistava
um piano
Era a coisa mais linda
do mundo
Uma mulher tocava o
piano
Era a coisa mais linda
do mundo
Pedi à minha mãe
Quero aprender a tocar
piano
Minha disse que era
impossível
Pois não tínhamos como
pagar
Já pagávamos o médico
Não
pude aprender a tocar piano
Era a coisa mais linda do
mundo
[Suspensão]
Mas um dia
Vou tocar piano
Um dia vou tocar piano
Como aquela mulher
Que tocava piano
Quando eu tinha
Sete
anos
MENINO
Um dia
A menina vai tocar piano
Um dia a menina vai
tocar piano
Como aquela mulher
Que tocava piano
Quando a menina tinha
Sete anos
MENINA COM LAMPARINA NO ORATÓRIO
O
meu maior desgosto
quando
menina:
ser
muito doente.
Não podia tomar nada gelado. Tive
vontades tantas. Principalmente de tomar sorvete. [Suspensão] Só podia tomar
sorvete uma vez por ano. Minha mãe só permitia que eu tomasse sorvete na festa
da padroeira de Mauriti: Nossa Senhora da Conceição. Tomava sorvete na missa e
no outro dia estava doente. [Suspensão] Só comecei a ficar menos doente entre
dez e onze anos de idade. Lembro que
meus irmãos mais velhos & eu ganhávamos roupas novas apenas uma vez ao ano.
Nossa mãe comprava o tecido & fazia a roupa. Íamos às festas sempre com a
mesma roupa. Conjuntinhos combinando. Era engraçado. Usávamos a roupa até
rasgar. O meu maior sonho era ser dama-de-honra. [Suspensão] Nunca fui chamada
para ser dama-de-honra. Acreditava que era culpa de minha mãe que não permitia.
[Suspensão] Minha prima foi dama-de-honra vezes-e-vezes. Ela tinha um vestido e
usava em todos os casamentos.
[Suspensão]
MENINA
DE CABELOS NEGROS LONGOS
Com uns três ou quatro anos fui a dama de honra do casamento do meu
tio. Levei as alianças. O casamento demorou muito, sentei no altar &
comecei a dormir. Na hora que o padre perguntou pelas alianças ninguém
conseguia encontrá-las. Depois disso nunca mais me chamaram para ser dama de
honra. Quando menina o meu sonho era ter uma irmã. Tempos depois minha mãe
ficou grávida. Uma vez minha mãe foi ao médico e consegui ouvir o coraçãozinho
do bebê. Não sabíamos se era menino ou menina. Quando disseram que nasceria um
menino, fiquei muito triste. Fiz um escândalo. Não sei o que minha família fez
para me convencer que um irmão, & não uma irmã como eu queria, era a melhor
coisa do mundo. Porém, anos mais tarde, quando nasceu a minha irmã, foi uma felicidade.
Queria que o nome dela fosse Carolina para chamá-la de Carol. Quando o meu pai
voltou do cartório, fiquei triste outra vez, porque minha irmã foi registrada
com o nome Ja-que-li-ne. Meu pai disse que Jaqueline era nome de rainha. Depois
acostumei com o nome Jaqueline.
MENINA COM LAMPARINA NO
ORATÓRIO
Outro sonho imenso
era
vestir-me de anjo. Ser anjo para
coroar Nossa Senhora no mês de maio. Para coroar a Virgem Maria em novenas de
maio. O meu sonho era usar aquele vestidinho de seda cor-de-rosa, pôr aquelas
asas grandes & ficar lá no altar. [Suspensão] Ao lado de Nossa Senhora.
Uma vez
fui chamada
para ser anjo
minha mãe não deixou
Fiquei doente.
Chorei o mês inteiro. Perdi a grande
chance de minha vida. Era lindo ver aquele altar. Aquela multidão rezando. As
pessoas olhavam para aquele mundaréu de anjinhos cantando. Perdi a grande
chance de minha vida.
Uma vez
fui chamada
para ser anjo
minha mãe não
deixou
só de raiva:
me escondi
durante horas até que mãe quase enlouqueceu à minha procura: fui até diante do
poço (fundo-fundo): deixei algumas pegadas por lá: depois sumi sem deixar
rastros: voltei para casa: me escondi no quarto (dentro de uma mala de viagem):
minha mãe ficou desesperada: me procurou em lugares tantos: chamou vizinhos
tantos para procurar: ela chegou a pensar que eu havia caído dentro do poço
(fundo-fundo): foi uma confusão: quando me encontrou ficou muito brava: brigou
comigo: foi muito severa:
Herdei este lado
espoleta do meu pai.
[Suspensão]
MENINA
COM CÂNTAROS DIANTE DO POÇO
íamos toda quinta-feira: toda quinta-feira íamos para o círculo de
oração: escolhíamos cantigas para cantar na igreja: aos domingos também íamos à
igreja: a igreja era pequenina: [Suspensão] as minhas roupas eram as últimas
roupas: porque sou a terceira filha: ficava com as roupas que sobravam: meu
pai: meu pai queria ter um filho: mas teve quatro filhas: sou a terceira filha:
minha mãe:
minha mãe era contadora de histórias da Bíblia: ficávamos todas
deitadas na cama e minha mãe contava histórias da Bíblia:
: minha mãe:
minha mãe conheceu meu pai na igreja: ele esqueceu a Bíblia de
propósito na igreja: a minha mãe encontrou a Bíblia e foi entregar ao meu pai:
assim eles se conheceram: começaram a namorar: se casaram:
[Suspensão]
meu pai:
meu pai deixou a igreja logo que nasci: meu pai era homem forte: meu
pai ficou doente: meu pai só voltou para a igreja quando estava para morrer:
meu pai morreu:
[Suspensão]
Morri tantas vezes. A morte é uma passagem, é o que dizem. Acredito
nisto. Meu pai morreu quando eu tinha onze anos. Sofreu um acidente de carro no
dia do meu aniversário. No dia em que comemorávamos a data do meu nascimento,
meu pai começou a se preparar para partir. Partiu um ano depois. Arrependeu-se
de erros tantos. Pediu-nos perdão. Naquele dia, quando meu pai morreu, foi uma
vizinha que nos avisou. Não tínhamos telefone. Não aceitei aquela notícia. Era
muito próxima do meu pai. Ele partiu uma hora & quinze da madrugada. Fiquei
acordada a noite inteira. Não consegui pensar noutra coisa. Precisava ficar com
o meu pai até o último instante. Meu pai era a pessoa mais importante da minha
vida. Meu pai pedia músicas para que eu cantasse. Meu pai gostava de me ouvir
cantar.
[Suspensão]
[O pai caminha pelo chão imenso. Olha para a
filha]
O PAI
Pula, filha.
Pula que não deixo você se afogar, filha.
Pula de cima da árvore, filha.
Pula no lago que a água é cristalina, filha.
Que os peixes são mansos, filha.
Que a manhã não finda, filha.
Que as tardes são imensas, filha.
Que à noite o céu é tomado de estrelas
para a gente olhar do bagageiro do carro, filha.
Pula, filha.
MENINA
COM CÂNTAROS DIANTE DO POÇO
[A menina do alto olha para o pai no chão imenso]
Pulo sim, pai.
Que não me afoguei nem vou me afogar, pai.
Que a árvore é segurança passageira, pai.
Que a água cristalina é que é liberdade, pai.
Que não tenho medo dos peixes valentes, pai.
Que a manhã não finda, pai.
Que as tardes são imensas, pai.
Que à noite o céu é tomado de estrelas
para a gente olhar do bagageiro do carro, pai.
Pulo sim, pai.
[A Menina com cântaros diante do poço parte
pelo chão imenso]
[Ao longe acena adeus aos outros
meninos]
[Breu]
[Choro de menino que nasce]
BORGES, Rudinei. Dentro
é lugar longe. Cooperativa Paulista de teatro, 2013.