É assim que
guardo barcos
na cumeeira da
casa.
Sento no canto
da sala e
desenho
bandeiras do Brasil.
Trapiches
intermináveis e
altos, fundos
como a tessitura
do olhar
daquele menino
que veio de
Marajupema
numa
locomotiva sem nome.
É assim que
acaricio o tempo.
Com um
albornoz.
Como um menino
moreno
que andou nas
ruas de Marajupema e
num dia – sem
flores –
encontrou numa
estante velha
um livro
empoeirado e
foi para o
mato apanhar cupuaçu
com flechas:
encontrou Zaratustra
em pé. Diante dum ancião.
Depois voltou
para a casa de taipas
calado,
deitou-se na rede e
dormiu um sono
assombrado.
Viu o começo
do mundo.
Olhou
entristecido para o Nosso Senhor e
chorou no colo
de Eva.
Quando acordou
desceu sozinho o estirão
à procura de
babaçu. Fez arapuca.
Riscos
na terra úmida.
Sentiu sede.
Tomou açaí.
É assim, sem
razão alguma,
que atravesso
os dias
como se
virasse cuidadosamente
as páginas dum
alfarrábio
sem conseguir
anuviar uma só palavra.
Mas
em Marajupema
os meninos
sabem de cor
o
nome de outros meninos.
Aprendem cedo o que é barro e
lama. Palavras
certeiras
que só são debulhadas com algum sentido
em
Marajupema.
Por isso, o
passo lento e
a vida
curta,
para o bem ou
para o mal,
tem duração
incontável.
Por vezes,
em Marajupema,
esquece-se, em
páginas dispersas,
o sobrenome do
avô da bisa.
A parte do Primeiro
Testamento
onde o profeta
Ezequiel conversa com uma gruta.
A alcunha de
lugares distantes:
Soure,
Capadócia, São Gabriel da Cachoeira,
Stanligrado. A
vila de Sai-Cinza.
O Mar Morto. O
deserto do Saara. Macapá.
O menino
encontra tudo isto
em escritos
numa caixa antiga
de madeira
branca.
Veja o que
encontrei, ele diz. E
confessa: não
li nada.
É assim que
guardo barcos
na cumeeira da
casa.
Remendando
livros de couro curtido.
Escombros dum tempo caiado.
Ao
rés-do-chão, diante do menino
retirado. Vai
para onde? – pergunto.
Não sei – ele
responde.
Um
instante mais tarde, ao longe, ele diz:
vou amanhar aracuãs. E
segue pelo
campo minado
– entre opúsculos.
Menino em Marajupema | Poema do livro Memorial
dos meninos | Rudinei Borges | 2014