Vozes e rochedos

nunca senti
a fome dos homens
a sede dos homens
só a febre estanque
dum cão solto pela cidade
um rapaz de dezenove anos
olhos de fagulha
armando arapucas sob passarelas
a voz de Deus
miúda no infinito
um pássaro sem asas
armado na fiação das esquinas
a dor amargosa
das luzes caídas nos viadutos
um querubim
em pé no elevador
uma bailarina
com ramos de jacintos
diante do mausoléu
um arlequim
no peito alado dos arranha-céus
a estátua de dois meninos abraçados
voltando de madrugada para casa
nunca senti
o sono dos homens
só o silêncio da maré ao longe
a maré deitando espinhos
sobre rochedos
só a maré em estilhas
me afronta
voz de Deus que sussurra
volteio e ventania

Vozes e rochedos | Poema do livro Memorial dos meninos | Rudinei Borges | 2014