inventário da poesia de rudinei borges


Rudinei Borges é um poeta nômade, insaciável dos caminhos. Insaciável, sobretudo, da liberdade do ver e do visto. Nesta procura, cada poema nasce em endereço diferente, um poeta diferente, embora, cada um, sem distinção, tenha a mesma marca da vivência de deslocamento, distanciamento, perda. Daí as insistentes tentativas de retorno, pela poesia, ao mundo amazônico da infância, às figuras femininas de seu berço, forjas fundamentais de seu ser-no-mundo; daí também sua compulsiva evocação em lançar mão desse mundo como lugar de “ter de onde se ir”, posto sempre às voltas com o tempo, o cais, o partir. Não é por acaso então que o cais, figura da partida, da despedida, da perda, do fim de dada experiência e tentativa de novo começo, seja uma das figuras mais evocadas. [Edilson Pantoja, escritor e doutor em Antropologia] 
Das vozes mais autênticas da literatura brasileira contemporânea, o poeta, dramaturgo e ficcionista Rudinei Borges nasceu de uma família de migrantes campesinos de Itaituba, oeste do Pará, na Amazônia brasileira. É autor dos livros Epístola.40Memorial dos meninosDentro é lugar longe e Chão de terra batida. Graduou-se em Filosofia. É mestre em Educação pela Universidade de São Paulo [USP]. 


Inventário 

Trapiches, âncoras, barcos, cacimbas, estirões, azinhagas, veredas e vicinais acocoram no olhar afoito que me alimenta. Meu coração é faminto. Vou ao cais com os meus meninos, morenos de luz, todas as tardes. E lá, dentro da vertigem, em fagulhas, reencontro, tecida em tacapes, a voz de Deus e das andorinhas. Meus meninos miudinhos no barro vermelho do beco. Nossa mãe a dizer, em sussurros, rezas para Nossa Senhora defronte do oratório de cipós, quibanos e jamaxins. O menino Cristo mundeiro, ao rés do chão. Os meus poemas são oráculos que nascem das ribeiras, do útero das árvores, do fogo de lenha. Toda a minha poesia é passagem para os campos, para as margens do Tapajós e do Tapacurá. Toda a minha poesia é retorno. Não devolvo nada ao vento, só recolho do plantio o que vi e vejo do-outro-lado-rio: o porto de Itaituba, a poeira que abrolha na estrada donde vim. Estou atento ao silêncio das noites, atento às lamparinas, atento às travessias. O menino que nasce também nasce em mim e chora todas as dores do mundo e dorme na manjedoura dos pássaros. O que tenho, em versos, é a coragem e a esperança dos dias, baús que são abertos com valia, velha máquina de costura na casa da vó Alzira, o semblante límpido de Eva, os olhos de Rosalva, uma fotografia da Avenida Getúlio Vargas em 18 de janeiro de 1983, quando nasci. Só a palavra imprime em mim a tessitura do tempo, verbo guardado nos começos. O que diz o menino, em memória, só isto me devora, me apraz, me alumia. Fiz um pacto certeiro com as andanças, com os andejos. Aqueles que atravessam me levam, me trazem. Anunciam o segredo dos cântaros. Minha poesia é fé nas gentes, nas canoas, no ventre da terra derruída. Vou ao cais com os meus santos, meus rosários, minhas procissões, minhas novenas – psicodelia andrógina das taipas. Todo jacinto germina ao redor da tempestade que reside no breu da poesia. A poesia é o modo mais daninho e álacre de viver. Quero viver com a poesia.

Anel de Saturno

Pessoa é para o que nasce.
Mas para que nasce uma pessoa
se quando nasce uma pessoa
nem é pessoa ainda?
Pessoa é invenção: anel de saturno.
Pessoa é coisa que a gente cria.
Pessoa não nasce para coisa alguma.
A gente é que diz:
pessoa nasce para ser feliz,
pessoa nasce para trabalhar,
casar/ter filhos/criar filhos.
Mas que será da pessoa
se não quiser trabalhar,
casar/ter filhos/criar filhos?
Que será da pessoa
se quiser ser vento-poeira-chão?
Se quiser ser correnteza-estrada-estirão?
Se quiser amar um-dois-três amores?
Se quiser amar ninguém?
Se quiser partir-voltar?
Se quiser ser o que quiser
e mais nada?
Que será da pessoa
se não quiser ser pessoa?
Se quiser ser andorinha e voar?
Se quiser ser beija-flor?
Se quiser ser arapuca?
Que será da pessoa?
Será pessoa a pessoa?

Amor

Mania feia
dizer eu te amo.
Vício ignóbil de linguagem.
Amor é coisa sagrada.
Não se pode invocar em vão.
É como o nome de Deus.
Não adianta chamar toda hora.
Amor é surdo.
Mistério que ninguém consegue expressar em palavras.
Prosopopeias. Metáforas. Arrojos. Acrobacias. Subterfúgios.
Devaneios. Solilóquios. Sussurros.
Amor é bicho difícil de domesticar.
Espírito encantado das colinas.
Pluma que se perde ao vento,
mas por vezes cai em nossas mãos.
É grão de mostarda. Mar morto. Capadócia.
Viagem que a gente imagina.
Sonho em madrugada fria.
Sobrado velho pintado com cores do inefável.
Por isso, é bonito. Cega a vista. Cega a alma.
Deixa a gente louco. Estarrecido. Calado.
Cheio de lágrimas no canto dos olhos.
Amor é canção de roda.
Esconde-esconde.
Carta amarelada perdida no alpendre.
Rosto na janela.
Risada interminável.
Pão sobre a mesa.
Amor é gesto. Corpo.
Olhares que se entrecruzam de manhãzinha.
Não é dizer. Não é conversa.
É ato abrupto.
Abraço apertado.
Silêncio.

Rapto

o rio o rapto um dia pela manhã teus seios o meu cigarro gosto de café na boca gosto do teu hálito seco espere por favor e vá se puder vá para perto do mar e volte co’olhos do teu pai volte cedo e durma e beba a tua cachaça a tua garapa só posso tecer só posso armar ruas suspensas barquinhos de papel e o sol de giz branco o cais de giz branco o céu de giz branco o teu pai de giz branco não sou a tua mãe o teu dia-cego o teu dia-cão meninos vão correr pela areia nus pela areia e ondas e sal e o sol branco de giz meninos negros de Henri Cartier-Bresson meninos-meninos do teu tempo-luz do teu tempo-cal o menino e um bambolê erês-erês do teu tempo-cruz do teu tempo-réu quando teu pai voltar vamos rezar juntos no alpendre vamos dormir juntos no areal vamos correr juntos pela estepe vamos plantar mudas de jacintos um beija-flor no altar dos erês uma menininha vestida de anjo na procissão de Santa Ana uma menininha para São Joaquim vamos descer a Rua Victor Campos vestidos de arlequim vamos em passos céleres pela Avenida Getúlio Vargas co’uma dama-da-noite entre os dedos na mão co’um rosário entre os dedos na mão e as luzinhas coloridas no alto da catedral e o teu pai num andor o teu pai o meu santo o teu pai o meu pastor o teu pai a minha gira o teu pai meu exú o teu pai meu caminho o teu pai no arrozal o teu pai co’um jamanxin nas costas o teu pai livre sem algemas o teu pai no cais na Vila Caçula o teu pai pelo Jurunas um folião o teu pai um romeiro barcos n’olhos do teu pai casinhas de madeira e a corda e o círio e a Virgenzinha de Nazaré e Belém e o Rio Jordão espere o rio o rapto um dia pela manhã teus seios o meu cigarro gosto de café na boca gosto do teu hálito seco espere por favor e vá se puder vá para perto do mar e volte co’olhos do teu pai co’o coração da tua mãe não esqueça de voltar co’o coração da tua mãe

Antônio

Andemos rápido, Antônio.
Andemos em vão, em círculo
– antes, então, que os atiradores
arremessem granadas em forma de pão
no precipício. Andemos de costas, Antônio.
No corpo íngreme das ruas,
ventre da procissão assustada.
Andemos raivosos.
Cálidos, Antônio – andemos.
Na calada da noite, voz atirada dos sonos, andemos
defronte da multidão. Dentro das alamedas, das calçadas.
Andemos em fileira nos campos, frontes de batalha.
Andemos em comboios, Antônio. Com as mãos para o alto.
O corpo ao rés do chão, Antônio. Não tenhamos pena.
O silêncio não é a senha da salvação dos ácaros.
Andemos rápido, Antônio.
Andemos, agora.
Cedo ou tarde eles vêm e nos levam. E nos fecham
em grades, caixas de ferro – escuras.
E nunca mais vemos o sol.
A lua, as estrelas. Nunca mais a claridão, Antônio.
Andemos, sem medo. Com fome, que seja.
Andemos,
antes que tomem
a tessitura da aurora, raios que vêm das distâncias.
Andemos rápido, Antônio.
Antes que segreguem roças de açucena.
Antes que levem rosas, cotovias.
Antes que durmam as andorinhas.
Andemos no quartel das escoras.
Andemos no serão das olarias.
Nas trincheiras do céu minado,
escombros do ar rarefeito.
Andemos rápido, Antônio.
Antes do raiar – que a travessia
amanha os córregos.
Que a ária é valia sem contas. Que no fim
das passagens, quando não há mais estadia,
o aluvião das veredas descansa
aos pés do dia. E não é mais preciso
andar com pressa, Antônio.

Ferramenta

um homem
nunca é
um homem
é
sempre
um martelo
um prego
uma maçaneta
uma porta
algo
meio tártaro
meio azougue
algo
meio dia 

Cantiga de ninar clarões

Para Paula Borges

ela pediu um poema
andrógino
estrábico
sujo de boemia
azougue
asfalto
um poema de rua e pó
assalto de provérbios nus
loucura
terra
e pedaços de auroras
partidas
numa locomotiva
ela pediu um poema
mas não é coisa que se peça
um poema
a poeta algum
poema
é andaria cara
a tessitura da palavra
pedra angular das torres
e casas
é cápsula rara
conquistar palavra
é dança obscena
de ventre estéril
não se cria
da palavra
outra coisa
que não seja vento
vento é tempestade
poema que se prese
é ciclone
ela pediu um poema
outro dia
bêbada de água e cais
com olhos quase verdes
pele alva
tirante a vermelho
lábios rosados
ela pediu um poema
num sussurro
ávido/triste
contando as palavras
os sons das palavras
e me disse ao pé do ouvido
tece com teus tacapes
num trapiche de âncoras
um poema
que seja meu 
um poema entre barcos
e gaivotas
um poema sagaz e livre
feito poeira
tomado de sol e vertigens
um poema feito o mar
e a areia aos pés do mar
ela pediu um poema
(só isso)
depois foi dormir
com o sono
no céu da boca
e o riso
da menininha
que voltava da escola
vestida numa saia
em tergal azul
tranças do cabelo
soltas
como pluma
ela pediu um poema
e agora trago
cantigas de ninar clarões
uma fogueira ao longe
onde os meninos
dizem coisas em códigos
e traçam planos
entre passagens
nos campos
o mundo inteiro
nos olhos dum maruim
dum vaga-lume
duma lampreia
dum lampião
a terra a girar
feito bússola
chapéu mexicano
ciscos na televisão fora do ar
a terra a girar
entre o pôr-do-sol e a boca da noite
quando chegava nossa mãe
a terra a girar
entre tamboretes na sala
e retratos de São Miguel Arcanjo
a terra a girar
em torno de si
nos braços do sol
ela pediu um poema
e agora trago
alumiações
em cântaros
toma, é teu o poema
não é coisa que se peça
um poema

Tessitura

a voz que me tece
são linhas de anzóis quebrados
algodão amarelado dos lençóis
trigo esfarelado dos paióis
feito pão nas manhãs
milho debulhado por mãos de mulheres
– fagulhas do céu no fim do mundo
canções de roda e rezas
procissões de maio
novenas de natal
pastores de barro
presépio de palha e bambu
meninos
de bicicleta
com asas de isopor
cordéis de náilon
bandeiras de papel crepom
foices e facões adormecidos no celeiro
a casa e o terreiro tomados pelo vento
o pai
a mãe
e o menino colhendo no ventre
as primeiras arras do alvorecer

Barcos

só vale a pena
a ária noturna dos olhos
a reza diária das mãos
o corpo entregue às tardes
o pai deitando alumiações nos barcos
o menino pequeno no colo da mãe
a vida inteira que se constrói

Redenção

Tão pequeno e tão gasto
o sonho humano na terra.
Não é fácil fazer arroz doce.
Mais difícil é a poesia.
É preciso coadunar palavras,
imagens, sons e tempos.
É preciso esperar que o poema aquiete,
acocore na manjedoura
e acorde depois – límpido de trovoadas.
Mas, por vezes, o poema é tempestade.
Não há guarda-chuva que resolva.
Para-raios que proteja. O poema evapora
noutras paragens, dentro do breu das estradas.
Vai pelo mundo – irredento.
Só volta anos mais tarde.
Senta defronte da mesa. Silencia.
Come arroz doce, sobremesa da janta.
Depois
– longe, na beira do oratório –
ouve baixinho a reza da mãe.
Isto é poesia, meu filho.

Meninos da Sétima Rua

Tenho saudades do que é breve
e vai para além dos barcos.
Esvai com a alvorada.
Saudades do menino cálido,
que se perdeu nos campos
entre o cais e o beco
e a tenra ilusão dos fósseis.
Saudades daquele menino:
amante das ruas,
andarilho das tardes.
O meu menino.
Eu mesmo.

Retrato do vô

quando o vô voltou da guerra
o vô voltou cansado
com pernas magras e feias
cheias de sebo e sal
sentíamos pena do vô
quando o vô voltou da guerra
o vô via calangos no ar
e uma estrela invisível
na cumeeira do céu
o vô ria e chorava
tarde e noite
não queria mais viver
um dia
o vô deitou e dormiu
e quando acordou
carregava nos olhos
os olhos de Deus

O eldorado

Quando era menino queria ser dono dum barco que viajasse para todos os lugares do mundo até chegar ao eldorado. E dizia entusiasmado:
– Paula será tripulante. Beto capitão. Mãe vigiará dia e noite para alcançarmos o eldorado antes da nau de Pedro Álvares Cabral.
Buscava o eldorado como o paraíso. Mas já havia encontrado.

Estilhas de sol

vó Ana era velha
até a palma da mão era velha
mas vó Ana abria caminhos
no meio da mata
as árvores acendiam passagens
e vó Ana descia o centro da mata
com um raio
vazão de auroras
até a nascente do rio
ao rés-do-chão
estendida na mata
vó Ana colhia
estilhas de sol

Retrato de Judas triste

sempre rezei sozinho
na escuridão
com os anjos
e uma multidão de poetas calvos
sempre rezei deitado
na cama da sala
no silêncio da noite esperava Judas
abrir a porta dos fundos
e sentar num tamborete velho
esperava Judas levantar a cabeça
e pedir
com um gesto calado
um pouco de água
um pouco de pão
e depois andar devagar
pela casa
com o corpo arrastado
e nunca mais partir

Retrato de guarda-chuva

aquele
guarda-chuva
silente
no canto da sala
aquele
guarda-chuva
diante do sofá
guardando notícias
na televisão
estéril alado
aquele
guarda-chuva
em pé
um sentinela
aquele
guarda-chuva
tris-te
com a voz de Deus
dentro de si
era o guarda-chuva
do pai
nunca mais
vi o pai

Auarã

Era só um pedaço, Auarã:
O aço da maquinaria
Que fulgia na lâmina amolada
– azougue da terra derruída.
A sangria é maior no teu corpo.
Arrebenta o pâncreas e o esôfago a artilharia.
Às vezes não nasce a manhã
E é sempre noite. A arritmia
Dorme nas ânsias dos barcos.
Adentra vielas e barracos a cavalaria
E pisa teu semblante de luz, Auarã
– não querem aceso o luzeiro.
Um dia talvez eu escreva
Uma epístola longa, sem fim.
Uma carta só pra contar
Da travessia do mar de esporas.
Da carne estilhaçada no vozeio das pedras.
Da ferida aberta na calmaria da refega.
O diabo não existe, Auarã.
Só existe a ganância.
A via de acesso aos mares de tormenta.
Só o que perece é o que germina.
Mas teu olhar não dizia, Auarã, de esperanças
Às Marias despejadas nestes boqueirões de sempre.
Tudo o que se pedia
Era pra enxergar numa fresta
Os primeiros raios da manhã.
Já não existe manhã.
Mas escrevo esta carta tardia, Auarã,
Pois queria dizer um pedaço
Da fagulha que luzia nas marés.
Só um pedaço, Auarã.
Só um pedaço.

Vol(ver)

teria volvido
por amores perdidos
lençóis metralhados
de linho e orvalho
caule de espinheiro
véu ávido por âncoras
montanhas do norte triste
onde dormem os pássaros
o ano inteiro
teria volvido
por noites claras
ruas ermas
quartos escuros
pulmões golpeadores
tosses longínquas
vindas da Capadócia
e do Mar Morto
vozes do além
de Aleister Crowley
teria volvido
por atiradores ocultos
cidades quase submersas
matadores falidos
nus masculinos de Herbert List
meretrizes de Maracaçumé
teria volvido
por bicicletas e gramofones
e navios da Guerra das Malvinas
alamedas de Ar-Riyãd
cais de Santarém
violões dependurados
em fios elétricos
da Rua Ipojucan
teria volvido
por céus de fagulhas
revoadas de andorinhas
metamorfoseadas
em crocodilos lilases
arco-íris rascunhados
em papel de seda
caderno velho de escola
gizes de cera derretidos
notas vermelhas
notícias da morte
de Anton Tchekhov
Alexander Pushkin
Lev Tolstoi
Mikhail Lérmontov
teria volvido
por olhares de vidro
paixões armadas
de febre e seca
mantos encardidos
cisto azul das tardes
teria volvido
por dores fortes na amídala
chapéus mexicanos
discos voadores
guerreiros de Botsuana
luz da manhã de Dodoma
Maputo Porto Louis
teria volvido
por ventos que vêm do beco
sais das marés
linhas dum pranto moreno
águas de menino
teria volvido

Âncoras de navios que vão mortos pelo mar

nada mal
re(mar)mos
entre
ret-
alhos
duma doença
que apavora
o peito
e dança
nos olhos
dum menino
duma sereia
uma doença
que se alastra
pelo cais da
cidade
em versículos
no cair
da tarde
leito do rio
nada mal
a(mar)mos
entre
espinheiros
o dia que nasce
no deserto
ao longe
raios
que vêm
do pacífico
um veleiro
em isla negra
uma mulher
com o sol
prisioneiro
num
espelho
uma bailarina
voz
dos rochedos
nada mal
derrar(mar)mos
entre
cântaros
gotas d’ondas
cordoalha
leme
e sal
em almudes
feituras
do aguaceiro
desenhos
de chuva
em lenços à deriva
do tempo
arma-
doria
preces de ventos
em bússolas
de adeus
nada mal
retor(mar)mos
entre
sussurros
a salmo-
dia
das horas
agras
de dentro
a fora
deprecar
aos céus
pelo mundo
pela sede
dos nevoeiros
âncoras
de navios
que vão
mortos
pelo mar

at(irado)

quis dizer
que aqui vejo disparar nos meus olhos
sobrados da Rua São Sabino
casas de velhos portugueses
que chegaram
aqui
– tardiamente –
na década de 1970
vejo disparar asfalto remendado
retalho de seda
motocicletas e luzes (em pedaços) de automóveis
meninos na flor da idade
cobertos com capuz e moletom
em pleno calor
vejo o breu at(irado)
no céu cinza
sobre meu sexo
numa bermuda
o breu misturado
numa garrafa de aguardente de cana
e café quente numa xícara
vejo disparar filmes e discos e livros
e penso meio desajeitado
que vi ontem
Aurevoir, le enfants
e
Hiroshima, mon amoure
e
ainda há outros tantos
filmes e discos e livros
e
a cidade inteira
e
depois de dez anos
aqui
sei tão pouco das coisas
quis dizer
que cheguei (aqui) num dia chuvoso
e comprei logo de início um guarda-chuva
para atravessar o Viaduto do Chá e o Anhangabaú
e dei quase cego com o Teatro Municipal
e a Praça da República
só depois
veio a cachaça e a Roosevelt e o Arouche
porque longe a casa dos padres
flertava com pássaros na Rua Amâncio Klein
em Casa Blanca perto do Capão
ali na Estrada de Itapecerica
em Santo Amaro
onde às sextas-feiras
no Largo Treze
ia conversar com a gente da rua
e o povo do albergue em frente ao cemitério
foi ali mesmo na rua
num colchão puído
que vi morrer um homem
e outros tantos desconhecidos
foi ali mesmo na rua
que a agonia da cidade
se pôs entre a aorta e o útero
como pus
e foi me matando aos poucos
se podia deixar de morrer
não deixei
só depois
quando o sangue pulsava
no chão de terra
onde nasci
quis dizer
que guardei aquele guarda-chuva
de quando cheguei aqui
numa mala
que trouxe do norte do Brasil
duma viagem de três dias
pelo Rio Amazonas (de Santarém a Belém)
e mais dois dias
numa estrada (de Belém a São Paulo)
e àquela época nem sabia
que desci o país quase duma ponta a outra
sem tremeluzir entre campos feito um menino
que fugia afoito da casa dos pais
para morar na maior cidade do país
como se fosse grande coisa aquilo
não era
hoje o guarda-chuva continua inteiro
e abre e fecha preto como sempre
se passei fome?
se passei sede?
ainda tenho fome e sede
e vejo anjos caídos na Consolação
toda manhã de julho quando faz frio
quis dizer
que desci a Rua Augusta
bêbado de mim e de meninos iguais a Roberto Piva
pus goela abaixo uma dose de caos
para dormir e acordar e dormir outra vez
e rezar acalantos com José Celso Martinez Corrêa
uma noite no Bixiga e nunca mais voltar para a vida
porque a vida custava o riso daquele menino
que descia comigo a Avenida Nazaré rumo ao museu
a vida custava o riso daquele menino
que me mostrou livros roubados
de Rilke e Whitman e Apollinaire numa manhã de 2003
a vida custava o hálito de cerveja e menta daquele menino
o corpo moreno e magro e a boca seca daquele menino
a vida custava o sussurro frio que vinha daquela boca
quis dizer
que aqui encontrei Saathan
e passei a amá-lo como um cão sem dono
e vivi com ele quase sempre aos pés duma janela de vidro
debruçado sobre a Rua Cipriano Barata
num sobrado velho no Ipiranga
entre catástrofes na televisão e a vida vã lá fora
em êxtase como um místico um eremita
estrangeiro febril sem hora certa de voltar
para a casa de Nietzsche
aqui deixei escapar a fé
por uma fresta do nono andar
numa manhã de inverno forte
com chuva de granizo
quis dizer
que foi um copo de vento e vertigem
que me fez ficar aqui
dias e dias e dias e dias e dias e dias e dias
e me fez subtrair as horas mês a mês
enquanto cresciam edifícios
no meu ventre perdido
enquanto cresciam roseiras
nos túmulos de Oswald e Mário de Andrade
foi um copo de água de chuva e itubaína
um copo vazio sobre o balcão do bar
que me fez olhar a Avenida Sapopemba com mais amor
e escrever poemas sem títulos
num trem que vai para Guaianazes ou Calmon Viana
um trem lotado de trabalhadores cansados
numa quinta-feira fim de tarde
quis dizer
que estou aqui (ontem) agora
(e amanhã sempre-sempre)
num apartamento no centro
abarrotado de revistas e livros comprados em sebos
e compêndios sobre filosofia existencialista
e
depois de amar Sartre e Camus e Simone de Beauvoir
Notes sur le cinématografe de Robert Bresson
(e escritos de Sidnei Ferreira de Vares)
comerei qualquer coisa
qualquer poça d’água servirá para o banho
qualquer canto servirá de cama
qualquer esquina será vazão dum novo poema
qualquer rua me levará
outra vez para a mesma cidade
onde vivi por dez anos

O menino na cacimba

que-se-diga
que-se-diga
caiu no mundaréu
tardinha dessas
no arredor da casa
do beco
só barro no arredor
do beco
toda espécie de barro
branco vermelho amarelo
a mãe ia com uma bacia
de alumínio
no ombro
na cabeça
nossa mãe punha
uma rudia de pano
na cabeça
e a bacia
na cabeça
a cacimba da vó
tinha um jirau de taipas
nossa mãe lavava roupa
toda tarde
na cacimba da vó
toda tarde
até escurecer
o menino sentava
na terra preta
esperava a mãe chamar
pedir água
o menino esperava
com o balde
entre as pernas
pequenas
e olhava o buritizal
quase no céu
o buritizal
e os pombos
acinzentados
dentro do buritizal
o menino jogava
o balde
na cacimba
o menino tirava
água e punha na bacia
uma duas três vezes
até a bacia derramar
sobre as taipas do jirau
e mãe dizer: chega
o menino voltava
para a terra preta
e punha o balde
entre as pernas
e desenhava elefantes
com um graveto
cavoucava a terra preta
procurava ouro
tesouro escondido
mas não havia nada
na terra preta
só brotos de berimbá
no quintal da vó
e goiabas no quintal
do Mundoca
um índio bravo
o menino tinha medo
de encontrar camaleão
no quintal do Mundoca
o menino tinha medo
de encontrar cobra-verde
no quintal do Mundoca
o menino tinha medo
de encontrar marimbondo de fogo
no quintal do Mundoca
por isso o menino ficava
sentado na terra preta
com o balde entre as pernas
e desenhava elefantes
com gravetos
até nossa mãe chamar
e pedir água outra vez
até escurecer
que-se-diga
que-se-diga
quando escurecia
o menino sentava
no sofá da casa da vó
bebia café comia cuscuz
e olhava a vó
com a lamparina acesa
o rádio ligado
o rádio de pilha
uma antena em direção
ao oeste
uma novela
uma novena
ele partiu para sempre
ele não vai voltar, vó?
o menino perguntava
e a vó nunca sabia dizer
volta, sim
todo dia o menino
voltava à casa da vó
e ouvia aquela novela
às seis horas
a ave-maria
às seis horas
até a mãe chamar
vambora
até a mãe dizer
amanhã, outro dia
vambora
até a mãe dizer
amanhã, outra hora
até o menino dormir
na rede da sala
e acordar com o vento
doido diante da lua
amanhã, outro dia
vambora
a mãe vai embora
com a bacia
nos ombros
na cabeça


– FORTUNA CRÍTICA –

O primeiro livro de Rudinei Borges, Chão de terra batida, publicado em 2009, foi recebido com entusiasmo por críticos como Afonso Romano de Santana e a pesquisadora Iná Camargo, da Universidade de São Paulo. A atriz Juliana Galdino considera o livro “um intenso depoimento, um testemunho que pode já ser – sem pretensão de ser – um testamento”. Para Carlos Alberto Rodrigues Pereira, mestre em Literatura Brasileira pela PUC/SP, “os poemas de Rudinei Borges possuem uma propriedade peculiar: conseguem nos impregnar da mesma nostalgia de seu autor, como se odores, sabores e outras sensações que percorrem a sua poesia se integrassem às lembranças de cada leitor. Epifanias que eclodem de cenas cotidianas revelam um universo repleto de singelas riquezas, para o qual somos transportados, por força do claro estilo do escritor. A propósito deste estilo, afirma o pesquisador, o rigor de quem procura a palavra exata e a simplicidade derivada da opção por prescindir de efeitos vazios se encontram em medidas precisas na escrita de Rudinei, o que nos faz crer estarmos diante de um poeta destinado a se consolidar entre os melhores”.
Por meio de uma prosa memorialista, algo que transita entre o regional e o universal, Rudinei Borges, apresenta-nos uma revisitação de seu espaço primeiro, no caso, o interior da Amazônia brasileira. Para Edner Morelli, poeta e também mestre em Literatura Brasileira pela PUC/SP, os poemas e textos de Rudinei guardam uma potencialidade infindável de sugestões poéticas, que vai do tom impressionista-cotidiano à surpreendente reflexão existencial-filosófica. Rudinei cria, ou melhor, re-cria sua própria mitologia, ao recuperar as figuras familiares mais íntimas, os espaços mais longínquos de sua infância-raiz, apontando para um movimento curioso de representação, que abrange o lado interior e exterior do poeta.

Para Edilson Pantoja, romancista e mestre em Estudos Literários pela UFPA, Chão de terra batida é um livro mítico. Ele remonta ao barro primitivo para tocar no mistério da gênese. Não da phýsys enquanto mundo objetivo, mas do cosmos subjetivo da poesia de Rudinei Borges. Narrativa em que as principais referências são femininas: a mãe, a vó, a Amazônia, grande ventre do qual aquelas parecem constituir figura.

Para Carlos Eduardo Marcos Bonfá, escritor e mestre em Estudos Literários pela Universidade Estadual Paulista, a cotidianidade da poesia de Rudinei Borges chama atenção. Uma cotidianidade singela, mas mesclada com elementos fantásticos, atingindo, através de algumas imagens e metáforas, os limiares de uma surrealidade distante da visão de mundo mais ortodoxa propagada pelos surrealistas franceses e também distante da violência e do erotismo típico deles. Trata-se de um cotidiano envolvido pelo fantástico com toda sua comoção singela, em que Deus é menino, em que Deus é palpável, comunicável e participa de nossa vida como mais um vivente perambulando por aí. Esta singeleza dá espaço a alguns mais ásperos e intensos momentos, como o poema Catedral de Sant´Ana.

Rudinei “tem a mão e o pulso do poema, seja ele texto, silêncio, vazio, chão, sangue, rios, árvores ou barro”, comenta o escritor Daniel da Rocha Leite. Para o poeta paranaense Rodrigo Domit, Chão de terra batida é, como o título já sugere, literatura sem reboco. Não tem rodeios nem rodopios, nem temperos ou condimentos, é literatura pura e simples, crua. Não se trata da poesia teorizada e lapidada para atingir a perfeição, trata-se da perfeição da poesia vivida”. Segundo o pesquisador Lou Caffani, Rudinei Borges não fala das reminiscências de sua vida, as faz cantar. Chão de terra batida não é uma recordação de sua infância e de seu povo, é um devir-canto dessas potências que (re)fazem uma potência viva. Para a escritora Lunna Guedes “não há pressa em suas linhas. Os versos cantam a saudade de um tempo distante do nosso. Até parece que não é real”.
Livro curioso [por Affonso Romano de Sant’Anna, poeta e crítico literário]

Trouxe livros de jovens autores para ler: um deles muito curioso – Rudinei Borges, autor do livro Chão de terra batida. Ele saiu lá de Itaituba/Pará e sobreviveu a um curso de Filosofia. [Friburgo, RJ – 28 de novembro 2009]

Um testamento [por Juliana Galdino, atriz – São Paulo]

O livro Chão de terra batida é um intenso depoimento. Um testemunho que pode já ser – sem pretensão de ser – um testamento.

Os avós [por Iná Camargo, filósofa e professora aposentada da USP – São Paulo]

Li o livro Chão de terra batida de Rudinei Borges e fiquei muito impressionada. Gostei principalmente dos textos que se referem aos avós.

O rigor de quem procura a palavra exata  [por Carlos Alberto Rodrigues Pereira, crítico de literatura – São Paulo]

Os poemas de Chão de terra batida possuem uma propriedade peculiar: conseguem nos impregnar da mesma nostalgia de seu autor, como se odores, sabores e outras sensações que percorrem o livro se integrassem às lembranças de cada leitor. Epifanias que eclodem de cenas cotidianas revelam um universo repleto de singelas riquezas, para o qual somos transportados, por força do claro estilo de Rudinei Borges. A propósito deste estilo, o rigor de quem procura a palavra exata e a simplicidade derivada da opção por prescindir de efeitos vazios se encontram em medidas precisas na escrita de Rudinei, o que nos faz crer estarmos diante de um poeta destinado a se consolidar entre os melhores.

Os sabores da infância [por Felipe Garcia de Medeiros, poeta – Rio Grande do Norte]

Chão de terra batida é um microcosmo onde o leitor caminha pelas terras e sente os cheiros e os sabores da infância, as brincadeiras de criança, as travessuras de menino levado, aquele tempo que não morre e que nos acompanha durante toda a vida e nos dá conforto quando há solidão.

O livro mítico [por Edilson Pantoja, escritor – Pará]

Chão de terra batida é um livro mítico. Ele remonta ao barro primitivo para tocar no mistério da gênese. Não da Phýsys enquanto mundo objetivo, mas do Cosmos subjetivo da poesia de Rudinei Borges. Narrativa em que as principais referências são femininas: a mãe, a vó, a Amazônia, grande ventre do qual aquelas parecem constituir figura. O livro conta, em instantâneos plenos de beleza e encanto, a conformação da poesia e do poetar na alma do menino. E, não obstante, na subjetividade do processo, uma viva comunicação se estabelece. O leitor se vê no poeta: Mistério da poesia! 

O chão de Rudinei Borges [por Edner Morelli, poeta – São Paulo] 

A literatura de Rudinei Borges impressiona pela sua simplicidade, comprovando que a boa obra literária nem sempre precisa se apoiar num hermetismo estético que, muitas das vezes, não dizem nada. Por meio de uma prosa memorialista, algo que transita entre o regional e o universal, o autor, com invejável tom poético, apresenta-nos uma revisitação de seu espaço primeiro, no caso, o interior do Pará. Ao optar pela primeira pessoa, a obra adquire uma certa atmosfera autobiográfica, porém, nunca se esquecendo da possibilidade de representação que as imagens literárias nos proporcionam.

O texto de Rudinei, materializado em seu primeiro livro “Chão de terra batida”, beira o relato pessoal, misto de crônica e conto fragmentado, com perdão da redundância. Obviamente, por trás dessa economia de meios de linguagem, os textos desse livro guardam uma potencialidade infindável de sugestões poéticas, como verificamos no texto abaixo, que vai do tom impressionista-cotidiano à surpreendente reflexão existencial-filosófica:

Altar
 
Mãe rezava o rosário inteiro
antes de dormir.
E eu baixinho repetia
as palavras da mãe:
amar significa olhar para as coisas
sem sentir saudades delas.

Rudinei cria, ou melhor, re-cria sua própria mitologia, ao recuperar as figuras familiares mais íntimas, os espaços mais longínquos de sua infância-raiz, apontando para um movimento curioso de representação, que abrange o lado interior e exterior do poeta. Como uma fotografia em prosa, Rudinei nos oferece uma visita de seu mundo particular, pois só ele esteve in locus nessas reminiscências, que esse livro possui a pretensão literária de eternizá-las.

As águas densas das sensações [por Sidnei Ferreira de Vares, educador – São Paulo]

Chão de terra batida é um mergulho nas águas densas das sensações, as mesmas águas em que navegam as pequenas embarcações que os olhos do menino avistavam do cais. Entre ruas e personagens, Rudinei Borges se debruça sobre o passado, resgata impressões do cotidiano e irrompe o universo cultural de sua terra, a Amazônia. O que mais agrada em Chão de terra batida é a capacidade do autor em olhar o passado sem distanciar-se do presente e correlatamente projetar o futuro. A maneira como Rudinei interage com a temporalidade torna este livro imprescindível. 

Os elementos fantásticos do cotidiano [por Carlos Eduardo Marcos Bonfá, escritor – São Paulo]

A cotidianidade da poesia de Rudinei Borges chama atenção. Uma cotidianidade singela, mas mesclada com elementos fantásticos, atingindo, através de algumas imagens e metáforas, os limiares de uma surrealidade distante da visão de mundo mais ortodoxa propagada pelos surrealistas franceses e também distante da violência e do erotismo típico deles. Trata-se de um cotidiano envolvido pelo fantástico com toda sua comoção singela, em que Deus é menino, em que Deus é palpável, comunicável e participa de nossa vida como mais um vivente perambulando por aí. Esta singeleza dá espaço a alguns mais ásperos e intensos momentos, como o poema “Catedral de Sant´Ana”.

A mão e o pulso do poema [por Daniel da Rocha Leite, escritor – Pará]

Rudinei, meu irmão, li o teu livro esta tarde. Releva a intimidade a seguir: parece que eu estava lendo um pouco de minha própria vida. Ri, chorei, sofri e me fascinei. Há similitudes na tua/nossa genêse. Esfinges que irão nos acompanhar eternamente. Sim, todos nós somos escritores em construção, do contrário, se pensarmos que estamos construídos, estamos acabados.

Meu amigo, tens a mão e o pulso do poema, seja ele texto, silêncio, vazio, chão, sangue, rios, árvores ou barro. Em todos estes lugares lá estará o coração da vida, as tuas marcas e letras: o olho d’água da tua poesia.

Sim, a Dona Rosalva Borges deve estar muitíssimo orgulhosa. Assim, como eu também estou de ti.  A genuína fraternidade talvez deva ser esta: sentirmos orgulho pela luz do outro como se ela fosse nossa também.

Segue, meu irmão.
És mais um na luta.
Poeta dos bons!

Literatura sem reboco [por Rodrigo Domit, poeta – Rio de Janeiro]

Chão de terra batida é, como o título já sugere, literatura sem reboco. Não tem rodeios nem rodopios, nem temperos ou condimentos, é literatura pura e simples, crua. Não se trata da poesia teorizada e lapidada para atingir a perfeição, trata-se da perfeição da poesia vivida.

Sensações na pele [por Lunna Guedes, escritora – São Paulo]

A poesia de Rudinei é o passo do homem no meio do asfalto que ainda não chegou. Não há pressa em suas linhas. Os versos nos cantam a saudade de um tempo distante do nosso. Até parece que não é real.

O fundo do quintal
era o cemitério dos bichos.
Quando morria gato e cachorro
era lá que a mãe enterrava.
Um dia morreu a nossa cadelinha
e não teve jeito: fiz promessa,
enxuguei lágrimas e rezei
para que Nossa Senhora
intercedesse por ela no céu.

Ele fala de colheitas e do menino que se perdeu no meio do caminho ao chegar na cidade de prédios altos e olhar para baixo. Lá no meio de sua gente, ele olhava pra cima e via estrelas, milhares delas… Via também os bichos, o mato crescendo pro lado e sua gente ribeira crescendo em meio a simplicidade da vida. Meia dúzia de par de olhos é preciso para se fazer uma vila, outra meia dúzia para se fazer uma cidade que se reúne ao redor do rádio para vibrar com o gol do Brasil.

Tenho saudades do que é breve
e vai além dos barcos
Esvai com a alvorada
(…)

E ao fazer a travessia das páginas, você descobre que o menino cresceu e foi além das divisas da pequena cidade onde cresceu, mas é preciso enfatizar que as sensações continuam em sua pele, afinal, um poeta se alimenta de suas próprias verdades.

No norte do Brasil há casas de barro em ruas de barro. Um dia vi Deus empinando pipa.

Sabores amazônicos [por Carlos Américo Kogl]

A mim pareceu ter encontrado um velho amigo. Pareceu ter encontrado Milton Hatoum misturado ao “Meu Pé de Laranja Lima”. Pareceu mesmo. Uma pitada de “Meninos da Rua Paul”, com algo de mim mesmo, que nasci em São Paulo, mas cresci em campinhos de Várzea e terrenos baldios. Minha vó tinha o quintal mais bonito, com jabuticabeiras e um triciclo. Rudinei me devolveu tudo isso. Rudinei Borges, aquele que se diz em construção, presenteou-me com a infância, não só a dele, mas também a minha. Imagino-o completo e, assim, não pretendo perdê-lo de vista.

Chão de Terra Batida é um destes livros que se lê num gole só e, não muito depois, se saboreia como ceia de Natal… sorvendo a cada página cheiros e sabores amazônicos. Somos todos brasileiros, uns de cá outros de lá, mas fundamentalmente como seres humanos, carregamos um universo dentro de nós. Felizmente Rudinei Borges se apresenta como tradutor.