rapto

o rio o rapto um dia pela manhã teus seios o meu cigarro gosto de café na boca gosto do teu hálito seco espere por favor e vá se puder vá para perto do mar e volte co’olhos do teu pai volte cedo e durma e beba a tua cachaça a tua garapa só posso tecer só posso armar ruas suspensas barquinhos de papel e o sol de giz branco o cais de giz branco o céu de giz branco o teu pai de giz branco não sou a tua mãe o teu dia-cego o teu dia-cão meninos vão correr pela areia nus pela areia e ondas e sal e o sol branco de giz meninos negros de Henri Cartier-Bresson meninos-meninos do teu tempo-luz do teu tempo-cal o menino e um bambolê erês-erês do teu tempo-cruz do teu tempo-réu quando teu pai voltar vamos rezar juntos no alpendre vamos dormir juntos no areal vamos correr juntos pela estepe vamos plantar mudas de jacintos um beija-flor no altar dos erês uma menininha vestida de anjo na procissão de Santa Ana uma menininha para São Joaquim vamos descer a Rua Victor Campos vestidos de arlequim vamos em passos céleres pela Avenida Getúlio Vargas co’uma dama-da-noite entre os dedos na mão co’um rosário entre os dedos na mão e as luzinhas coloridas no alto da catedral e o teu pai num andor o teu pai o meu santo o teu pai o meu pastor o teu pai a minha gira o teu pai meu exú o teu pai meu caminho o teu pai no arrozal o teu pai co’um jamanxin nas costas o teu pai livre sem algemas o teu pai no cais na Vila Caçula o teu pai pelo Jurunas um folião o teu pai um romeiro barcos n’olhos do teu pai casinhas de madeira e a corda e o círio e a Virgenzinha de Nazaré e Belém e o Rio Jordão espere o rio o rapto um dia pela manhã teus seios o meu cigarro gosto de café na boca gosto do teu hálito seco espere por favor e vá se puder vá para perto do mar e volte co’olhos do teu pai co’o coração da tua mãe não esqueça de voltar co’o coração da tua mãe

Rapto | Poema do livro Memorial dos meninos | Rudinei Borges | 2014