lá
no tempo antigo
vó
Eva vinha com potes d’água
água
de poço fundo
fonte
nos fundos da casa
nos
fundos do mundo
céu
azul de buritizal
céu
de pássaro
a
dançar samba-caído
céu
de sanhaçu, de flautim, de andorinhão
céu
de araponga
a
se perder de vista a terra, o campo, a peleja
céu
de Nossa Senhora Menina
céu
de Nossa Senhora das Graças
céu
de São Pedro, pescador
água
de beber em caneca de barro
água
de banhar o corpo
água
de benzer a casa
água
de molhar espinheiro do deserto
broto
de macaúba
água
de amolecer coração de pedra
água
de menino
a
se perder de vista a margem, o barco, o cais
vó
Eva que vinha com cantata de sussurros
cantata
de novena
reza
na frente da casa
defronte
da rua
debaixo
das árvores
reza
de noitinha
às
seis horinhas, fim do dia
rosário
entre dedos
tamboretes
no entremeio do breu
a
se perder de vista a luz, a sombra, a travessia
reza
aos que foram
ao
outro mundo
tão
distante o outro mundo
ponte
rabiscada num alfarrábio, numa tapera
a
Ave-Maria na planta dos pés
na
palma da mão
um
gole de café
a
plantação de milho
arados
do vô Alcides
sol
de festejo que reina em batuque
a
se perder de vista a promessa, o sacrifício, o cio
Menino
Jesus que desenha primeiros passos
no
chão de barro da casa da vó
Menino
Jesus que anda em direção
ao
fogão de lenha
à
procura de cuscuz de arroz
chá
de erva cidreira
Menino
Jesus que dorme no colo da vó
na
rede da sala
no
quarto uma arca com cordéis
Menino
Jesus que dorme e sonha
e
murmura cantatas de danação
Menino
Jesus que vive
no
coração de pedra da gente
Menino
Jesus que ama o mundo
e
a vó e o mundo e a estrada e a vó
lá
no tempo antigo
Poema do livro Memorial dos meninos | Rudinei Borges | 2014