Para Heitor Vallim
alumiar-alumiar
feito vaga-lume
só fagulha-fogueira
meninos sentados em tamboretes
boca-da-noite
fogão a lenha
e remos encostados na parede
de barro e sede
o vô nunca dizia
vaga-lume
o vô dizia
pirilampo
porque há muita diferença
entre vaga-lume
e pirilampo
há muita diferença
entre o mundo de lá
e o mundo de cá
menino do Tapacurá
tem mais sustança
nos braços nas pernas
menino do Tapacurá
cresce a comer farinha
amarela-amarela
de mandioca braba
é sol sobre o corpo
sempre
sol dentro dos olhos
a luzir
uma lamparina
mas lamparina
não é vaga-lume
lamparina é fumaceira
é reza
de noite a conversa é baixinha
de noite a conversa é pequena
só quando o povo
do-outro-lado-do-rio
vem com urunzun
algazarra...
até o vô bebe uma pinga
e a vó reclama
Moacir-Moacir
tu é fraco, homem
não bebe
o vô esquece
acha graça
os olhos ficam avermelhados
o vô saliva um pouco
e brinca-brinca
aí a conversa é grande
o povo
do-outro-lado-do-rio
tem rádio
e a gente ouve
o jogo do Brasil
toda tarde de domingo
a gente ouve
o jogo do Brasil
o povo
do-outro-lado-do-rio
diz palavrão
e a vó reclama
diz palavrão não, homem
que menino aprende
tudo quanto não presta
coisa boa é difícil de ensinar
e o vô acha graça
o povo
do-outro-lado-do-rio
grita
o Brasil ganhou o jogo
a tia vai fazer bolo
festa
e a gente vai ficar
acordado até tarde
e o vô não vai sair cedo
amanhã
o vô não vai para o mato
amanhã
o vô nem vai pegar
em foice
amanhã
o vô vai ficar em casa
na rede
e o vô vai ficar
a contar história
com o povo
do-outro-lado-do-rio
é lá
do-outro-lado-do-rio
que fica a igreja
a capelinha de Santa Rosa
é lá
que a gente ganha
bala de menta
no natal
é lá
que a vó chora
de vez em quanto
no Dia dos Finados
é lá
que a vó canta
cantiga de fazer
a gente chorar também
na capelinha
do-outro-lado-do-rio
onde fica o campinho
de futebol
era lá que o pai jogava bola
dizem que o pai
o pai era bom de bola
dizem que o pai
o pai era bom na arrozeira
dizem que o pai
o pai era bom na enxada
dizem que o pai
o pai era bom de levantar casa
de barro de taipas
dizem que o pai
o pai trouxe um padre
do-outro-lado-do-rio
para o batizado dos meninos
dizem que o pai
o pai trouxe um carrinho de pilha
da cidade
um carrinho cheio de boi
e soldados de guerra
dizem que o pai
o pai era derrubador de juquira
dizem que o pai
o pai não-sei-mais
lembro do pai de costas
numa colina
longe de costas
numa colina
numa motocicleta
o pai foi embora
ficou só a mãe
em casa
e a máquina de costura
velha
na sala
em casa
e o povo
do-outro-lado-rio
uma vitrola
a mãe chorou
na-beira-do-rio
no trapiche
a mãe ficou velha
com os cabelos brancos
e a chuva
dentro dos cabelos brancos da mãe
o pai foi embora
é o que dizia
o povo
do-outro-lado-rio
e uma dia era tarde
ouvi a motocicleta
pensei
é o pai
mas a colina
continuava vazia-vazia
era um barco
do-outro-lado-rio
era não
era a boiada do vô
na travessia do Tapacurá
a água do rio era baixa
era não
era o sino da capelinha
do-outro-lado-do-rio
era Missa de Finados
era não
era cortejo
teu pai morreu
morreu não
era não
era o pai não
era outro soldado de guerra
era a mãe
sozinha na sala
era a máquina de costura
a mãe remendava
a mortalha do pai
o pai levou um tiro
no garimpo
um homem
do-outro-lado-do-rio
roubou cem gramas de ouro do pai
o pai era rico
era não
esta terra nem era do pai
este barco nem era do pai
esta arrozeira nem era do pai
era não
o pai devia
os olhos da cara
a roupa do corpo
a mãe vai vender tudo
para pagar dívidas do pai
o pai teve outras mulheres no garimpo
outros filhos no garimpo
o pai era bom não
nunca mandou uma carta
um bilhete
um carrinho de pilha
um carrinho de boi
uma bala de menta
o pai era traste de homem
era não
o pai era traste de gente
um andrajo um errante
um mascate
vendedor de farinha no cais
era não
o pai não era isso não
alumiar-alumiar
feito vaga-lume
lá longe vem o pai
já velho o pai
com uma lamparina
na mão
uma boroca nas costas
o pai trouxe ouro
um rádio
um carrinho de pilha
um carrinho de boi
uma gaita
o pai trouxe uma gaita
uma máquina de costura
uma máquina de costura nova
para a mãe
um vestido para a vó
um chapéu para o vô
uma caixa
uma caixa com bala de menta
o pai vai aprender com o vô
o pai nunca mais vai dizer
vaga-lume
pi-ri-lam-po
o pai vai dizer
um pirilampo no breu
um pirilampo
atravessou a lamparina
um pirilampo no breu
um pirilampo
virou fagulha-fogueira
um pirilampo no breu
o pai vai dizer
um pirilampo
...
do-outro-lado-do-rio
Poema do livro Memorial dos meninos | Rudinei Borges | 2014