Forte
ventania.
Ao longe, agora
só o estrangeiro está preso à arca. Segura uma mala de viagens. Uma mala
surrada. O estrangeiro está defronte da arca.
O ESTRANGEIRO –
Volta, pai. Foi o que ele disse diante da colina. Volta, pai. Tenho sede. (Suspensão) E-r-a: eis a palavra que
encontramos para explicar o que já foi. Esta porta abre. Esta porta fecha. Teus
olhares são como luzeiros. Vi Satã nos teus olhares aquela noite de março em
Quijote. Vi Satã nu e bêbado. Satã perdido entre bares. Satã confuso e triste.
Satã preso a um testamento antigo. (Suspensão)
A cavalaria partiu pelas terras, saqueou armazéns e casas. (Suspensão) Pai, aquela tarde na colina eu o esperei. E espero hoje,
sempre-sempre. Pai, aquela tarde na colina, o fogo dos céus furtaram as terras
e as plantações dormiram queimadas. Tudo está ceifado. Meus dias de vento e
chuva. As manhãs. Tudo está ceifado. Eu o amarei pela vida inteira. Terminará o
verão. Começará o inverno. Eu o amarei sempre-sempre. Porque nunca amei antes.
Porque o meu coração estava soterrado na lavoura. Nunca esqueça os jacintos,
vos digo. E peço: olhe as serpentes e o deserto. Quando teus olhares partirem
sozinhos para outros lugares findará a colheita e o estio. Ficarei sozinho. Não
partirei. Por Deus, volte. (Suspensão)
Não sou. Espere. Espere e digo. Agora. Sempre-sempre. Meus olhos são
encardidos. Minha boca saliva. O resto do corpo rasteja. Não tenho dó dos que
partem. Nem dos que ficam. Dos espantalhos diante da lavoura. Perdão? Não
haverá perdão. Caridade? Não haverá caridade. Veja, tudo será tomado pela
secura: os meninos, as mães dos meninos, os pais dos meninos diante da cerca.
Arame farpado? O mundo está cheio de arame farpado. (Suspensão) Um biscoito? Você quer um biscoito? Um prego? Você quer
um prego? Uma moeda? Você quer uma moeda? Sempre-sempre assim. Merda. (Som de locomotiva) Você lembra?
Estávamos nus. Levaram o meu relógio. Uma corrente que eu tinha no pescoço. Os
meus sapatos. Uma mulher diante da mesa de madeira perguntou: de onde você é?
Eu disse: nasci em Quijote. Ela riu e fez outra pergunta: então, temos um
estrangeiro aqui? E me arrastou para o terceiro vagão. A locomotiva vai partir
para o deserto, disseram. Vão levar os meninos, todos os meninos feridos. Ela
cuspiu no meu rosto. Uma mulher diante da mesa de madeira perguntou: qual o seu
nome? Eu disse: não lembro. Ela riu e replicou: então, temos um estrangeiro sem
nome aqui. Judas – alguém gritou. O nome dele é Judas. Calei. Não sabia. Não
sabia, ao certo, o meu nome. (Suspensão)
O meu nome é Judas.
Breu.
Agruras, ensaio sobre o desamparo | Texto dramatúrgico de Rudinei Borges
Agruras, ensaio sobre o desamparo | Texto dramatúrgico de Rudinei Borges