ciência de perambular e ser livre – como andorinha


ANDEJO I 
(Tenta reanimar o amigo de estirão, mas mostrando que tem mais sapiência em entendimento da vida)

Só um pouco de alegria nos olhos e força nos braços. Amanhã, com a aurora do corpo, arremessar trincheiras e valas. Partir com alforjes meio à multidão de trilhos. Chegar onde quer que seja. Inventar aldeias. Tecer redes. (Olha ao longe, atenta as distâncias) Dormir com a lua no céu da boca.  

(Olha firme o outro andejo)

Homem honrado tem coragem de olhar o próprio rosto cavoucado no espelho mesmo embaçado. E sabe que homem nenhum deve se contentar com a vida fácil, mas que homem nenhum nasceu para enamorar agruras. Homem que se preze é livre. Sobretudo, quando vive preso.
Homem que se preze é andorinha em cima da terra: não raspa arapuca. Porque andorinha é pássaro de valentia e esperteza. Todavia, esperteza não é coisa que, em azinhagas tantas, à toa se encontre. Esperteza é ciência de muitas passagens. Labirinto grande. (Olha ao longe, atenta as distâncias) Como este chão de terra, onde a vista se perde entre ventanias e lonjuras de Deus-do-céu e dos anjos e de Nossa Senhora da Conceição Aparecida.
Todavia, esperteza não é milagre: como recupera a vista o cego; a andar que volta o aleijado; gente que, duma hora para outra, enriquece. Esperteza é arte dificultosa, que se apetece na vida, nas andanças pelo mundo. Quem quiser saber que se atreva na labuta: que esperteza é ciência de quem se arrisca, mesmo sabendo que pode dar com os burros n’águas de cacimba. Esperteza é aprendizado.
Alguns – admito – parecem que já nasceram tomados de tanta ciência que causam admiração nas gentes que olham boquiabertas. Mas estes são raros. A gente não encontra todo dia. E quando encontra ou foge para não ser enganado ou fica por perto de modo a aprender a novidade.

(Aproxima-se do outro andejo)

Todavia, digo com clareza: esperteza não é arte de enganação. Esperteza é arte de seviração: modos que homem que se preze encontra de se virar nestas andanças de agruras tantas; modos de não passar fome, sede e misérias tantas que a gente nem sabe o nome de tão grandes que são. (Olha ao longe, atenta as distâncias) Esperteza é, sobretudo, ciência de perambular e ser livre – como andorinha. 

Excerto de Vida é o que a vista traz para dentro dos olhos e guarda na alma | Dramaturgia | Rudinei Borges | 2014