Cantiga de ninar clarões

Para Paula Borges

ela pediu um poema
andrógino
estrábico
sujo de boemia
azougue
asfalto
um poema de rua e pó
assalto de provérbios nus
loucura
terra
e pedaços de auroras
partidas
numa locomotiva
ela pediu um poema
mas não é coisa que se peça
um poema
a poeta algum
poema
é andaria cara
a tessitura da palavra
pedra angular das torres
e casas
é cápsula rara
conquistar palavra
é dança obscena
de ventre estéril
não se cria
da palavra
outra coisa
que não seja vento
vento é tempestade
poema que se prese
é ciclone
ela pediu um poema
outro dia
bêbada de água e cais
com olhos quase verdes
pele alva
tirante a vermelho
lábios rosados
ela pediu um poema
num sussurro
ávido/triste
contando as palavras
os sons das palavras
e me disse ao pé do ouvido
tece com teus tacapes
num trapiche de âncoras
um poema
que seja meu
um poema entre barcos
e gaivotas
um poema sagaz e livre
feito poeira
tomado de sol e vertigens
um poema feito o mar
e a areia aos pés do mar
ela pediu um poema
(só isso)
depois foi dormir
com o sono
no céu da boca
e o riso
da menininha
que voltava da escola
vestida numa saia
em tergal azul
tranças do cabelo
soltas
como pluma
ela pediu um poema
e agora trago
cantigas de ninar clarões
uma fogueira ao longe
onde os meninos
dizem coisas em códigos
e traçam planos
entre passagens
nos campos
o mundo inteiro
nos olhos dum maruim
dum vaga-lume
duma lampreia
dum lampião
a terra a girar
feito bússola
chapéu mexicano
ciscos na televisão fora do ar
a terra a girar
entre o pôr-do-sol e a boca da noite
quando chegava nossa mãe
a terra a girar
entre tamboretes na sala
e retratos de São Miguel Arcanjo
a terra a girar
em torno de si
nos braços do sol
ela pediu um poema
e agora trago
alumiações
em cântaros
toma, é teu o poema
não é coisa que se peça
um poema

Cantiga de ninar clarões | Poema do livro Memorial dos meninos | Rudinei Borges | 2014